O AGORA QUE DEMORA – Nossa Odisseia II


Tema: “Odisseia”, de Homero
Criação, adaptação, roteiro e direção: Christiane Jatahy
Colaborador artístico, luz e cenário: Thomas Walgrave
Diretor de fotografia: Paulo Camacho
Designer de som: Alex Fostier
Música original: Domenico Lancelotti e Vitor Araújo
Coordenação e colaboração: Henrique Mariano
Participantes: Abbas Abdulelah Al’Shukra, Abdul Lanjesi, Abed Aidy, Adnan Ibrahim Nghnghia, Ahmed Tobasi, Bepkapoy, Blessing Opoko, Corina Sabbas, Faisal Abu Alhayjaa, Fepa Teixeira, Frank Sithole, Iketi Kayapó, Irengri Kayapó, Jehad Obeid, Joseph Gaylard, Kroti, Laerte Késsimos, Linda Michael Mkhwanasi, Malvin Phana Dube, Manuela Afonso, Maria Laura Nogueira, Mbali Ncube, Mustafa Sheta, Nambulelo Meolongwara, Noji Gaylard, Ojo Kayapó, Omar Al Sbaai, Phana, Pitchou Lambo, Pravinah Nehwati, Pykatire, Ramyar Hussaini, Ranin Odeh, Renata Hardy, Tato Cunha , Vitor Araújo e Yara Ktaishe
Montagem e filme: Paulo Camacho e Christiane Jatahy
Câmera filme: Paulo Camacho
Segunda câmera filme: Thomas Walgrave
Mixagem filme: Breno Furtado

Temporada: 02.05 a 02.06.19
Local: Sesc Pinheiros | São Paulo (SP)
Duração: 120 min
Assistido em: 02.05.19 (estreia mundial)
  
Veja aqui fotos que tirei na estreia.

Sinopse
Através do prisma da câmera, Christiane Jatahy conta a história dos exilados contemporâneos, constrangidos pela dor de não lembrar e impedidos pelas provações do pensamento de amanhã. Guiada da Palestina para o Líbano, da Grécia para a África do Sul por uma ficção de 3.000 anos, a diretora brasileira queria terminar sua odisseia na Amazônia e filmar uma terra arada com lutas políticas e violência ambiental. Em “O Agora que Demora - Nossa Odisseia II”, segundo ato de uma obra iniciada em "Ítaca - Nossa Odisseia I", o público está imerso na ficção. Tomado em um dispositivo cênico, entre teatro e cinema, ele é convidado, sem perceber, a tecer os fios do presente, os filhos do mundo. (Divulgação)

Ouça aqui Christiane Jatahy apresentando a peça na noite de estreia.


NOTA BENE
O projeto “Nossa Odisseia”, de Christiane Jatahy, é um díptico. A primeira parte teve estreia mundial em 16 de março de 2018 no Ateliers Berthier de Odéon – Théâtre de l’Europe, em Paris. Foi encenada também no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa. Só depois no Brasil, no Sesc Consolação, em São Paulo, entre 26 de julho e 05 de agosto de 2018.

Como a diretora de teatro e cinema afirmou à época, “os espetáculos são independentes, apesar de complementares, não é uma continuação, mas outra abordagem”.

Em 2018, publicamos no blog alguns textos sobre a primeira parte do projeto “Nossa Odisseia”. Veja aqui e também texto da professora Adriane da Silva Duarte (FFLCH/USP).

Programa disponível de “Ítaca – Nossa Odisseia I”.

COMENTÁRIO
É tudo muito diferente da primeira esta segunda parte do díptico “Nossa Odisseia”, da renomada encenadora brasileira Christiane Jatahy, que é hoje artista associada do Centquatre-Paris e Odéon-Théâtre de L’Europe.

Diferente é bom. Seria mesmo de se esperar que Jatahy não repetisse a complexa estratégia teatral de “Ítaca”, com dois palcos simultâneos, troca de plateia pelo público, transbordamento de água no palco etc. O espetáculo de 2018 foi, a meu ver, uma experiência especial pela sua teatralidade bem orquestrada. Agora, é diferente. São duas horas de um telão à sua frente, numa situação que seria cinematográfica, mas não chega ser porque é maculada a experiência da sala escura.





Para mim, é uma oportunidade excelente de refletir sobre as artes e as linguagens híbridas, tema de um painel de debates na III Jornada de Tradução e Adaptação, que acontecerá em novembro na USP.


O amplo palco do Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, não tem utilidade, exceto por refletir a luz que emana do telão. Jatahy apresenta a obra (pelo menos o fez na estreia mundial), numa breve fala ao vivo dirigida à plateia. Ela permanece todo o tempo na extrema lateral esquerda do palco, acompanhada de Thomas Walgrave, num trabalho de contrarregra, como se tem visto com frequência no teatro atual. Sua presença deve ser tomada como um indício da pessoalidade dessa segunda parte de “Nossa Odisseia”.


A equipe de produção e realização do filme que sustenta o espetáculo diz ter feito uma odisseia pessoal pela Palestina, Líbano, África do Sul, Grécia e Brasil. Em cada lugar, exceto na Amazônia, artistas locais em situação de exílio participaram das gravações lendo trechos da “Odisseia”, de Homero, na língua de seu país, numa mesa de banquete com toalha branca, obviamente evocando Odisseu no palácio dos feácios.


Os relatos ficcionais de Odisseu sobre o Ciclope (canto IX), Circe (canto X), a catábase (canto XI), as sereias (canto XII), Cila e Caribdis (também canto XII) são permeados de relatos de odisseias pessoais não ficcionais. São vários Odisseus. Leia o artigo do professor André Malta (FFLCH/USP) sobre os feácios e Odisseu.


O conceito de “fronteiras”, como revela Jatahy na apresentação, é importante nesse trabalho, mas, para além das fronteiras geográficas, ela destaca as fronteiras entre realidade e ficção, entre cinema e teatro, entre passado e presente. Assim, o gatilho dessa obra é o “hic et nunc” que acontece com [SPOILER] artistas inseridos na plateia. O filme é gravado e é já passado, o teatro é “o aqui e o agora”. Mas, como admite o material de divulgação, o que presenciamos é a exibição de um filme atravessada por uma interação teatral.


Uma observação de natureza menos técnica é a impressão que me deixaram essas duas horas de que não se efetivou uma odisseia para o “núcleo duro”, por assim dizer, de produção e realização da obra. Pareceu-me sempre que filmaram “exemplares” da crise de refugiados sem que conseguissem virar do avesso, revelar as entranhas desse sofrimento. Nascer no Oriente Médio, como diz um dos participantes do filme mais para o final, não é uma escolha. Não nessa vida.



Então, mesmo quando Jatahy vai à Amazônia numa odisseia pessoal, apresentando-se como um Telêmaco, os nativos kayapó são “exemplares” de um mundo que não é o dela.


Durante a 6ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) deste ano, crítica semelhante salpicou a participação do diretor e dramaturgo suíço Milo Rau. Um olhar eurocêntrico não alcançaria a situação dos refugiados. Veja aqui nosso post.


Não sei bem, talvez seja melhor refletir mais, no entanto, “O agora que demora” me levou a essa associação de ideias. Jatahy e Rau são encenadores com marcante presença no cenário teatral europeu, isso diz algo.
(Renata Cazarini)


Leia reportagem do Estadão sobre a linguagem híbrida do espetáculo.

Veja também “O agora que demora” no Festival D’Avignon, na França, em julho.