MULHERES TECENDO HISTÓRIAS: AULA 11 [25.05.19]


“O escritor tem que deixar algo quando escreve,
uma parte do corpo, um pedaço de unha”.
(Marcelino Freire)


Nesta nossa 11ª aula das “Mulheres tecendo histórias”, enxergando muito mal, pois tinha esquecido os óculos de leitura, o mestre poeta Marcelino Freire nos propôs um exercício de listas mais uma vez. Escreveu em letras grandes em papéis que foram sorteados os temas para escrita de uma lista de 10 itens. Os temas traziam imagens por vezes mais concretas, por vezes mais abstratas, lugares reais ou imaginários, de onde deveríamos tirar ideias, imagens, palavras, pedaços da gente.


Marcelino falou a frase em epígrafe e lembrou-se de mencionar Há uma gota de sangue em cada poema, livro de estreia de Mário de Andrade (1893-1945), publicado sob o pseudônimo de Mario Sobral em 1917, logo após o fim da Primeira Grande Guerra e cinco anos antes da famosa obra modernista Pauliceia Desvairada. Do livro, que pode ser baixado aqui, selecionei o seguinte poema:
OS CARNÍVOROS
Quando a paz vier de novo, nova e franca,
passar nestas estradas e caminhos,
novas aves talvez e novos ninhos
hão de agitar-se pela manhã branca…


Novos ventos virão da serra,
úmidos, rindo-se, esfuziar no prado;
e novamente, regoando a terra,
ir-se-á, rangindo, o arado…


Pouco tempo depois, pela estrada, os viandantes
verão, cobrindo os campos marginais,
os brocados trementes, ampliondeantes,
as roupagens custosas dos trigais…


Virão novas colheitas,
virão risadas a remir fadigas,
virão manhãs de acordar cedo,
virão as tardes feitas
de conversas à sombra do arvoredo,
virão as noites de bailados e cantigas!…


Toda a população ir-se-á nos vales
colher o trigo novo e lourejante;
e, na pressa afanosa, bem distante
lhe passará da ideia tanta luta,
tantos passados males!


Pelo campo ceifado, à Ave-Maria,
na tarde enxuta
e fria,
enquanto o vento remurmura, meigo e brando,
mulheres de Millet, robustas e curvadas,
irão glanando, irão glanando…


Tudo será colheita e riso. – Então,
depois de tantas fomes e misérias,
de tantas alegrias apagadas,
de tantas raivas deletérias,
os celeiros de novo se encherão.


Mas o trigo abastoso dos celeiros
relembrará o sangue, a vida,
os penosos momentos derradeiros
duma geração toda destruída…


Olhai! hoje o trigal é mais verde e mais forte!
O chão foi adubado a carne e sangue…
Que importa haja caído um exército exangue,
se deu a vida ao trigo tanta morte!


Este é o trigo que é pão e alento!
Vós que matastes com luxúria e sanha,
vinde buscar o prêmio: é o alimento…
Ei-lo: em raudal, em nuvem, em montanha!


Este é o trigo que nutre e revigora!
É para todos! Basta abrir as mãos!
Vinde buscá-lo!… – Vamos ver agora,
quem comerá a carne dos irmãos!


“O escritor é aquele que traz notícias:
– O que tem na penteadeira da travesti?”
(Marcelino Freire)





Na foto dá pra ver alguns dos temas sorteados: arca do perdão, camarim de Deus, caixa da alegria, guarda roupa do medo, nécessaire do bailarino, jardim proibido, casa da luz, penteadeira da travesti, dentro do fogo, geladeira do mendigo. Alguns dos trabalhos feitos ali mesmo, na sala, e lidos ali pelas colegas:



PENTEADEIRA DA TRAVESTI QUANDO ELA TIVER DINHEIRO


  1. Um espelho grande com luzes ao redor, um espelho onde ela possa escrever recados com batom para ela mesma;
  2. Batom, um de cada cor;
  3. Delineadores coloridos para alegrar o olhar de gatinha;
  4. Sombras só para os olhos, nada de sombras na alma;
  5. Blush para fingir a saúde;
  6. Cílios postiços com cílios tão longos que chegam a coçar os pés de Deus ao piscar;
  7. Base! Todas precisamos de uma base, né?;
  8. Bolsinha pra levar para viagem;
  9. Perucas de todos os cortes e cores de cabelos;
  10. Purpurina, pois não basta ter brilho próprio, tem que brilhar mais.
                                                                                                    (Por Cristina Eiko)


DENTRO DO FOGO


A chama
Queima
Arde
Acende
Incandesce
Alma
Morta
Vida
Desabrocha
Aquele amor queimado, doente,
Adormecido.
(Por Ivonete Pascoal Azevedo)
                  




NA GELADEIRA DO MENDIGO TEM


  1. Forminhas de gelo, com cada quadradinho cheio de nada e poeira.
  2. Borracha da porta com metade caída, pendurada no congelador sem gelo e sem porta.
  3. Garrafa pet de Coca-Cola com 1/4 de água em temperatura ambiente.
  4. Prateleiras com ferrugem.
  5. Meio marmitex de antes de ontem.
  6. Um corotinho com um dedo de pinga.
  7. Um limão murcho e um tomate mofado no compartimento dos ovos.
  8. Muitos sachês de maionese e ketchup com a validade vencida.
  9. Um pacote de ração para cachorro de pequeno porte.
  10. Na gaveta: 1 pente, 1 pasta de dente espremida, 1 botão de camisa, 1 camiseta do PT furada no ombro, 1 agulha de costura, 1 rádio-relógio desligado há três anos, 1 caneta, vários guardanapos de papel com poemas lindíssimos que ele lê em voz alta embaixo do Minhocão, todos os sábados, às 16 horas em ponto, andando pra lá e pra cá.
(Por Heloísa Rocha Aguieiras)



A imagem da geladeira do mendigo, construída pela Helô, levou Marcelino a recordar a montagem do seu conto “Muribeca”, encenado pelo ator Fabio Caio, entra em cena saindo de uma  geladeira desligada, como abandonada num lixão. Dá pra ver aqui, mas a qualidade da imagem e do som não é boa, então, publico o texto de acordo com a leitura que o mestre poeta faz no seu audiobook Angu de sangue:



MURIBECA
Por Marcelino Freire

Lixo? Lixo serve pra tudo. A gente encontra a mobília da casa, cadeira pra pôr uns pregos e ajeitar, sentar. Lixo pra poder ter sofá, costurado, cama, colchão. Até televisão.
   É a vida da gente o lixão. E por que é que agora querem tirar ele da gente? O que é que eu vou dizer pras crianças? Que não tem mais brinquedo? Que acabou o calçado? Que não tem mais história, livro, desenho?
     E o meu marido, o que vai fazer? Nada? Como ele vai viver sem as garrafas, sem as latas, sem as caixas? Vai perambular pelas ruas, roubar pra comer?
     E o que eu vou cozinhar agora? Onde vou procurar tomate, alho, cebola? Com que dinheiro vou fazer sopa, vou fazer caldo, vou inventar farofa?
     Fale, fale. Explique o que é que a gente vai fazer da vida? O que a gente vai fazer da vida? Não pense que é fácil. Nem remédio pra dor de cabeça eu tenho. Como vou me curar quando me der uma dor no estômago? Uma coceira, uma caganeira? Vá, me fale, me diga, me aconselhe. Onde vou encontrar tanto remédio bom? E esparadrapo e band-aid e seringa?
     O povo do governo devia pensar três vezes antes de fazer isso com chefe de família. Vai ver que eles tão do olho nessa merda aqui. Nesse terreno. Vai ver que eles perderam alguma coisa. É. Se perderam, a gente acha. A gente cata. A gente encontra. Até bilhete de loteria, lembro, teve gente que achou. Vai ver que é isso, coisa da Caixa Econômica. Vai ver que é isso, descobriram que lixo dá lucro, que pode dar sorte, que é luxo, que lixo tem valor.
    Por exemplo, onde a gente vai morar, é? Onde a gente vai morar? Aqueles barracos, tudo ali em volta do lixão, quem é que vai levantar? Você, o governador? Não. Esse negócio de prometer casa que a gente não pode pagar é balela, é conversa pra boi morto. Eles jogam a gente é num esgoto. Pra onde vão os coitados desses urubus? A cachorra, o cachorro?
    Você precisa ver. Isso tudo aqui é uma festa. Os meninos, as meninas naquele alvoroço, pulando em cima de arroz, feijão. Ajudando a escolher. A gente já conhece o que é bom de longe, só pela cara do caminhão. Tem uns que vêm direto de supermercado, açougue. Que dia na vida a gente vai conseguir carne tão barata? Bisteca, filé, chã de dentro -  o moço tá servido? A moça?
    Os motoristas já conhecem a gente. Tem uns que até guardam com eles a melhor parte. É coisa muito boa, desperdiçada. Tanto povo que compra o que não gasta – roupa nova, véu, grinalda. Minha filha já vestiu um vestido de noiva, até a aliança a gente encontrou aqui, num corpo. É. Vem parar muito homem morto. Muito criminoso. A gente já tá acostumado. Quase toda semana o camburão da polícia deixa seu lixo aqui, depositado. Balas, revólver 38. A gente não tem medo, moço. A gente é só ficar calado.
    Agora, o que deu na cabeça desse povo? A gente nunca deu trabalho. A gente não quer nada deles que não esteja aqui jogado, rasgado, atirado. A gente não quer outra coisa senão esse lixão pra viver. Esse lixão para morrer, ser enterrado. Pra criar os nossos filhos, ensinar o nosso ofício, dar de comer. Pra continuar na graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não faltar brinquedo, comida, trabalho.
    Não, eles nunca vão tirar a gente deste lixão. Tenho fé em Deus, com a ajuda de Deus, eles nunca vão tirar a gente deste lixo. Eles dizem que sim, que vão. Mas não acredito. Eles nunca vão conseguir tirar a gente deste paraíso.

                   Angu de sangue. Ateliê Editorial, 2000, p. 23-25.





Pra aula do dia 8 de junho, a tarefa é levar uma carta escrita para o tempo, para o sr.Tempo.