MULHERES TECENDO HISTÓRIAS: AULA 9 [11.05.19]


“O conteúdo de um quarto claro é um quarto escuro”.
(Marcelino Freire)

Marcelino diz que teoriza usando ideias dos outros, mas fala de microcontos com poesia. É todo Marcelino:

“O conteúdo de um quarto claro é um quarto escuro. O escritor trabalha nesse quarto escuro: existem entrelinhas, subsombras. Quando não tem o conteúdo do quarto escuro, não é um bom conto: não há camadas, é tudo muito superficial”.

O microconto é um tema que vem sendo tratado aqui e ali no curso “Mulheres tecendo histórias”. Eu não, mas as colegas vêm se arriscando nessa modalidade literária. Às vezes, até sem querer ou saber. A Fernanda leu seu diário, de lá, uma frase ficou na minha cabeça e, quando a repeti em voz alta, disse o Marcelino que bastaria o título certo e ela seria um microconto:

“Um bilhete de amor jogado no lixo da cozinha”. (Fernanda Castello Branco de Oliveira)

Um microconto muito reputado é o do autor Augusto Monterroso (1921-2003), hondurenho de nascimento, naturalizado guatemalteco, que viveu no México: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. Marcelino observa como o texto parece tão curto e tão longo, e que é extraordinário nas lacunas que deixa para serem preenchidas em coautoria com o leitor: quando? onde? Como disse o mestre poeta: “Monterroso tem esse quarto escuro”.

Coincidência: o microconto inédito da Fernanda e o microconto famoso de Monterroso têm, ambos, 44 caracteres, contando espaços. Um exercício literário que Marcelino propôs a cem autores ao organizar “Os cem menores contos brasileiros do século” (Ateliê, 2004) foi que escrevessem um conto com até 50 letras. Confidências do organizador:

Moacir Scliar mandou uma primeira versão acreditando que tivesse como limite até 50 palavras! A versão final: “Um microconto em 50 letras? Pior. A vida toda em 50 letras”.

Millôr Fernandes compensou (malandramente) a obrigatória brevidade do texto com a liberdade de um título imenso: “EMOCIONANTE RELATO DO ENCONTRO DE TEODORO RAMIREZ, COMANDANTE DE UM NAVIO MISTO, DE CARGA, PASSAGEIROS E PESCA, DO CARIBE, NO MOMENTO EM QUE DESCOBRIU QUE A BELA TURISTA INGLESA ERA, NA VERDADE, UMA PERIGOSA TERRORISTA CUBANA, QUE TENTAVA PENETRAR NUM PORTO DO SUL DA FLÓRIDA, PARA DINAMITAR A ALFÂNDEGA LOCAL, E PROCUROU FORÇÁ-LA A FAVORES SEXUAIS. – Capitão, tem que me estuprar em ½ minuto; às 8, seu navio explode”.

Dalton Trevisan fez um diálogo, sem título, que Marcelino sabe de cor: “– Lá no caixão... – Sim, paizinho. – ...não deixa essa aí me beijar”.

Ernest Hemingway (1899-1961), escritor norte-americano, autor de “O velho e o mar” (1952) entre outras tantas obras famosas, teria criado (a autoria não é comprovada) o microconto de seis palavras: “For sale: baby shoes, never worn”. [Traduzido em sete palavras: “Vendem-se: sapatos de bebê nunca usados”.] Também neste caso, Marcelino disse: “Hemingway tem um quarto escuro”. Desse modelo de texto de seis palavras, que tem sido chamado de “flash fiction” surgiram antologias no mercado literário norte-americano. Há, por exemplo, um projeto de biografia em seis palavras, com mais de um milhão de colaboradores. Eu gostei muito desta: “Afraid to write the wrong poems”, de Syra Ortiz-Blanes [Traduzido em sete palavras: “Com medo de escrever os poemas errados”.] Veja aqui.

Um microconto realmente micro é “Pe.Dófilo”, de Marcelino Freire.

O microconto também pode ser cheio de humor. No Concurso de Microcontos de Humor de Piracicaba, interior de São Paulo, o primeiro colocado em 2011 foi este:

IN MEMORIAM
O político morreu, virou estátua.
Agora são os pombos a prestar-lhe as justas homenagens. (André Luís Gabriel)
A lista completa está aqui.


Da nossa turma das “Mulheres tecendo histórias”, a Cristina Eiko – ou Cris – compôs, toda bom humor, alguns minicontos – ou seja, breves, porém mais extensos que os microcontos. Selecionei estes dois:

POR QUE DESISTI DE IR AO CINEMA
O melhor brownie que já comi
não custava tão caro.
Caro foi o ingresso
do pior filme que já vi.

POR QUE DESISTI DE IR AO CINEMA 2
Casal entra no festival
de filmes neozelandeses
pra se conhecer melhor.
E senta do meu lado.

A leitura rápida propiciada por textos como esses aí de cima não é inovação. Como bem observou o mestre poeta, a bíblia é feita de microcontos: os versículos, ou versos breves. “A bíblia é muito moderna porque é rápida em transmitir ensinamentos, com ritmo, com som, com repetição”, disse Marcelino, acrescentando: “Tudo dá no twitter. O conceito de ler rápido chega nas maravilhosas frases de caminhão, nos epitáfios”.

Duas frases que apanhei na boa safra da aula 9 do nosso curso:
“Resumo do dia. Apenas uma palavra: cansaço!” (Ivonete Pascoal Azevedo)
“Tinha medo de ser uma estrela no céu e esqueleto na terra”. (Márcia Nichii e a filha Aline)