MULHERES TECENDO HISTÓRIAS: AULA 8 [04.05.19]




“Não eram mal intencionados, mas foram até onde puderam ir”.
(Marcelino Freire)

Este encontro foi curioso. A gente bem que tentou, mas gira e gira e gira e voltamos ao Brasil, de antes e de hoje, de como o homem (branco) acaba ditando as regras do jogo no país e como todo mundo é feito vítima se não erguer a voz.

[Enquanto escrevo o relato, ouço “Contos negreiros”, de Marcelino Freire, o-poeta-que-sabe-falar-poesia, seu audiolivro de 2013.]

Delma foi que provocou, pedindo a Marcelino, o poeta pernambucano, que manifestasse seu ponto de vista sobre o conterrâneo Gilberto Freyre. Acabaram sendo abordados intelectuais que estão sempre colocados em xeque pela visão – até certo ponto – sociologicamente progressista em determinado momento da história do país, mas hoje – em muito – ultrapassada acerca da sociedade brasileira. Algumas frases dos livros mais importantes dos autores referidos:

“A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração”. (Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil”, 1936)
Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com os animais é bem nosso: é de todo o menino brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata”. (Gilberto Freyre, “Casa Grande & Senzala”, 1933)
"O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. (Euclides da Cunha, “Os sertões”, 1902)
"A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. (Joaquim Nabuco, “Minha formação”, 1900)

Fui generosa na seleção das frases, pois há outras mais controversas desses autores. A frase em epígrafe é o resumo do que pensa Marcelino, mas ele salientou que sempre volta a Euclides da Cunha pela qualidade da linguagem: embora o jornalista tivesse limitações no trato com a ideia de “sertanejo”, sua descrição de imagem é como um tratado, na avaliação do mestre poeta.

Mas o disparador da discussão sobre o cenário sociopolítico atual foi a leitura do diário da Sandrinha. Um texto longo, que não vou reproduzir. Posso salientar que um trecho ficou claramente caracterizado com um poema – quando a autora relata a exaustiva busca pelo corpo da prima em morgues da capital paulista e vizinhança. Cadê o corpo? É a pergunta que se repete, e a recorrência da palavra “rotina” marca o ritmo.


Marcelino Freire comenta: “Há um poema dentro do diário. Não é só a anotação do diário. As palavras também vão ajudando a dar conta do relato. As palavras são um disparador. De repente, a palavra vai dando suporte para falar do descaso do poder público. O papel vai nos dar um tipo de socorro da realidade à nossa volta”.

Foi a palavra “chão” o disparador do poema de Solange, que emocionou e mereceu aplausos das “Mulheres tecendo histórias”.



PALAVRA: CHÃO
A terra eu piso, mas muito respeito, ela é o meu chão.
A poesia que voa e assenta sempre sai do chão.
A nascente de água límpida e pura brota do chão.
O corpo negro lanhado, o sangue marcou o chão.
A casa, o lar, um teto, o alicerce se forma no chão.
A terra em que nasci, lá deixei o meu chão.
Quando olho o horizonte, a distância, ainda tem muito chão.
O alimento presente à mesa, ele veio do chão.
Uma criança descalça, a mãe grita: – Tira o pé do chão!
A garoa – se for muito fina – nem molha o chão.
Com sapatos ou descalços, nossos pés se apoiam no chão.
Casa feita de barro, barro vem do chão.
O suor na lavoura, da testa do lavrador, ele pinga no chão.
O tapete vermelho é forrado no chão.
O atleta que corre, suas passadas são firmes no chão.
Mesmo estando no ar ou no alto, estamos sobre o chão.
Um prato que se quebra, os cacos vão direto pro chão.
A criança birrenta se joga no chão.
O bêbado cambaleia, à vezes termina no chão.
Panela preta de barro, barro tirado do chão.
Quando rezo e peço, ajoelho no chão.
O mendigo na rua, ele dorme no chão.
Povo que não preserva... joga lixo no chão.
Há mais um corpo negro no chão.

Muito se falou no encontro, antes da leitura de “Palavra: chão”, acerca da violência que faz o país adoecer como se vítima de um vírus de contágio rápido. Com esse poema, muito mais fica dito.

Beleza em cima de beleza. Violência em cima de violência. Contra o homem, contra a natureza.

No início da sessão, Marcelino havia lido as suas palavras coloridas de “Para Iemanjá”, que abre o livro “Rasif, mar que arrebenta” (Editora Record, 2008). Rasif é a palavra árabe que dá origem a “Recife” desde “arrecife”. Assim como o termo tupi “Pernambuco” significa “mar que arrebenta”.

Para Iemanjá
Oferenda não é essa perna de sofá.
Essa marca de pneu. Esse óleo. Esse breu.
Peixes entulhados. Assassinados. Minha Rainha.
Não são oferenda essas latas e caixas.
Esses restos de navio. Baleias encalhadas.
Pinguins tupiniquins. Mortos e afins.
Minha Rainha.
Não fui eu quem lançou ao mar essas
garrafas de Coca. Essas flores de bosta.
Não mijei na tua praia. Juro que não fui eu.
Minha Rainha.
Oferenda não são os crioulos da Guiné.
Os negros de Cuba. Na luta. Cruzando a nado.
Caçados e fisgados. Náufragos. Minha Rainha.
Não são para o teu altar essas lanchas
e iates. Esses transatlânticos. Submarinos de
guerra. Ilhas de Ozônio. Minha Rainha.
Oferenda não é essa maré de merda.
Esse tempo doente. Deriva e degelo.
Neste dia dois de fevereiro. Peço perdão.
Minha Rainha.
Se a minha esperança é um grão de sal.
Espuma de sabão. Nenhuma terra à vista.
Neste oceano de medo. Nada. Minha Rainha.

Com esse poema, muito mais fica dito.