MITsp 2019: MILO RAU E A TRAGÉDIA - 2


É preciso voltar ao suíço Milo Rau, artista em foco na 6ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), que acabou neste fim de semana. É que, tendo visto mais duas peças do seu repertório, novos elementos para a construção da sua estética da tragédia teatral contemporânea se agregam à abordagem que estou tentando propor para a obra desse polêmico encenador.

Para que fique devidamente registrado, assisti a:
“A repetição. História(s) do teatro (i)” (2018) em 15.mar.19 no Auditório Ibirapuera;
“Cinco peças fáceis” (2016) em 20.mar.19 no Teatro Sérgio Cardoso;
“Compaixão. A história da metralhadora” (2016) em 22.mar.19 no Sesc Vila Mariana.

Nenhuma dessas peças parte diretamente de um tema clássico no sentido em que este blog adota o termo, mas também não está alheia a ele. E particularmente “Compaixão” acessa diretamente os mitos de Édipo e de Antígona. Isso é explicitado no texto da peça. Logo chego a isso. Por ora, faço algumas observações mais genéricas.

As três peças têm uma trama que parte de episódio violento real e atual. A violência, sabemos, está no centro das tragédias da Antiguidade. Milo Rau toma acontecimentos recentes para construir tragédias, recorrendo a dispositivos dramatúrgicos muito contemporâneos, como o fragmento, o documental, o autobiográfico, o metateatral. Acerca disso, veja aqui nosso post sobre “A repetição”.

Sobre “Cinco peças fáceis”, apenas arrisco um palpite*: a opção de pôr em cena crianças (11 a 14 anos), dirigidas pelo único adulto no palco numa teatralização da história dos crimes de pedofilia perpetrados por Marc Dutroux, condenado em 2004 na Bélgica, é uma estratégia de contemporização. Atores adultos que aparecem como duplos dos amadores mirins são exibidos exclusivamente em gravações de vídeo, num expediente claro de distanciamento.

A mim, parece que a apresentação de cada uma das crianças que se prepara para a montagem que veremos é uma preparação do espectador para chegar à cena específica em que uma das meninas é responsável pelo monólogo de uma das vítimas do pedófilo, o clímax. A cena é forte, mas seria – creio – insuportável se a montagem não fosse construída ludicamente, por assim dizer. Sugiro que leia aqui uma crítica recente e bem informativa (em inglês) sobre essa peça.

* Só depois que eu já tinha escrito, li que a peça teria sido encomendada pressupondo elenco infantil. Pode ser que seja fato, mesmo assim, mantive meu palpite em favor da transparência.

TUDO DEPENDE DE QUEM DETÉM A PALAVRA

Volto-me agora mais detidamente para “Compaixão. A história da metralhadora”.
O duplo monólogo semidocumental, baseado em entrevistas com trabalhadores de ONGs,
clérigos e vítimas de conflitos na África e na Europa, aventura-se deliberadamente
num terreno contraditório: como suportamos a misérias dos outros e por que
assistimos a isso? Por que um morto às portas da Europa vale mais que milhares
de mortos nas zonas de guerra civil no Congo? “Compaixão. A história da metralhadora”
não só contempla os limites da nossa compaixão,
mas também os limites do humanismo europeu. (Divulgação)


São duas atrizes. A jovem negra do Burundi Consolate Sipérius, adotada por um casal branco e feita cidadã belga. A suíça branca e loira de expressão alemã Ursina Lardi. A peça tem a duração de 105 minutos. Toma a palavra, primeiro, Consolate, que relata sua história de órfã em decorrência de um massacre no país da África Central e apresenta, numa maleta muito pequena, o que restou dessa memória: a roupa de domingo com que chegou à Europa. Para contar seus 30 anos de vida, ela tem 10 minutos.

Entra em cena, então, Ursina. Durante os 90 minutos seguintes ela detém a palavra com exclusividade e relata os seus preparativos e os do diretor para elaboração da peça, incluindo viagens aos países referidos, assim como a própria experiência – ou de seu personagem, não se sabe bem – em ações chamadas humanitárias na África, como em Ruanda e no Congo, vizinhos do Burundi, bem como junto a refugiados que assomam às praias europeias. O texto é, em parte, ficcional.

Como Consolate continua na lateral do palco, sentada a uma mesa de onde faz a sonoplastia de apoio à fala de Ursina, seria de esperar que houvesse alguma interação entre as atrizes – até porque há momentos em que a primeira é mencionada pela segunda. Nada disso. Consolate retoma seu turno de fala apenas nos 5 minutos finais da peça, quando Ursina já deixou o palco. Seria uma fala sem ouvinte, pode-se dizer, não houvesse a ruptura da quarta parede desde o início do espetáculo.



As breves falas de Consolate emolduram a palestra-performance de Ursina. Isso fica evidente pelo recurso ao púlpito no cenário, de onde fala a maior parte do tempo a atriz europeia, com sua imagem projetada em close num telão com legendas. A palestra-performance é uma das modalidades do teatro contemporâneo, à qual Milo Rau recorre nessa peça como metáfora das relações de poder entre o mundo dito humanista do branco europeu e a África negra colonizada.

Além da explicitação da autoridade intelectual eurocêntrica ativada pela longa palestra, a opressão é manifesta graficamente quando Ursina relata como é pressionada, num sonho, a urinar sobre uma aliada negra nomeada Bienvenue e acaba por urinar em cena sobre detritos no cenário.

Eu quis me interrogar sobre essa compaixão, sobre essa maneira de colocar
um refugiado no palco, alegando que fazemos teatro político, enquanto, ao mesmo
tempo,  não há solidariedade real, nenhuma ideia política por trás de tudo isso.
(Milo Rau)

O encenador não está escondendo o exercício de ironia no seu fazer teatral. O mérito de um crítico talvez seja apontar as estratégias estéticas adotadas por ele ao fazer isso. Um dos dispositivos é, como evidenciado, a distribuição muito irregular do tempo de fala. Outro, o jogo de ausência-presença entre as atrizes, também já referido.

Espacialmente, interessa apontar como Consolate fica o tempo todo posicionada na extrema esquerda do palco em relação à plateia, fora do proscênio, enquanto as marcações de Ursina, mesmo em meio aos detritos, reafirmam seu livre trânsito e sua centralidade na cena.

Milo Rau também alude à mitologia grega, estabelecendo analogia da tragédia clássica com a contemporânea, que busca parametrizar, como já salientei num post anterior. Leia aqui.

A certa altura, Ursina relata que desempenhou o papel de Édipo. Ela reproduz algumas falas do personagem e estabelece uma associação entre Édipo e Grace, a protagonista do filme “Dogville”, de Lars Von Trier. É como se fosse preciso ajudar o espectador que não tem clara a referência clássica, mas decifra o código cinematográfico facilmente.

“No fim do dia, no fim da história, tudo depende de quem tem a metralhadora”, diz Ursina sobre a moral da história de “Dogville”. Vale lembrar que a personagem Grace aceita prestar assistência aos moradores na cidade provinciana onde está refugiada até ser resgatada, pelo pai, da violência crescente que lhe é imposta por eles. O pai de Grace é um gângster, que atende o pedido da filha de exterminar todos os moradores e eliminar o vilarejo do mapa.

Édipo retorna à cidade na qual ele é o rei e não entende por que, ao seu redor,
todos estão morrendo, antes de perceber que foi  ele quem trouxe a peste.
Metáfora, talvez um pouco simplista, do trabalho das ONGs, que observei
durante dez ou quinze anos em minhas viagens e meu trabalho.
(Milo Rau)


Procedimento semelhante é adotado na fala final de Consolate. Ela diz ter sido a protagonista numa montagem de “Antígona” passada em meio aos massacres na África Central, com corpos vitimados pela violência política. Nesse momento da peça, a personagem clássica é associada à vingativa Shosanna, uma fugitiva do nazismo do filme “Bastardos inglórios”, de Quentin Tarantino. Um close de Consolate é exibido no telão, mimetizando cena crucial do filme, determinação do encenador, como a atriz informa ao público. Ela afirma: “É o rosto da vingança, e ele fala”.

É este grande círculo de violência e vingança que nunca para de girar, como na “Oresteia”.
A violência continua, só importa saber quem é o dono das metralhadoras.
No final da peça, Consolate é quase um deus ex machina que, como na “Oresteia”,
intervém para dizer: "Acabe com a vingança, vamos pôr fim a esta história
da metralhadora, que só pode ser vencida pela compaixão, pela solidariedade".
(Milo Rau)

O TEATRO É UMA METRALHADORA

Esse posicionamento do dramaturgo e diretor suíço em “Compaixão” é considerado “cinismo” pelo crítico Juliano Gomes, que escreveu sobre a peça a convite da MITsp: “A aparência de autocrítica é somente o pretexto para que a Europa possa exibir orgulhosa para nós, colônia de exploração, seus feitos”. Veja a íntegra aqui.


Embora eu não discorde essencialmente dessa ideia, a dramaturgia do encenador suíço, ao fazer citações tanto da tragédia clássica (“Édipo” e “Antígona”) como do cinema contemporâneo (Lars Von Trier e Quentin Tarantino), parece admitir limitações na expressão do seu engajamento pós-colonial apenas pelo discurso narrativo da palestra-performance.

Não se trata somente de relatar os percalços dos voluntários e funcionários brancos das ONGs, que não têm resistência física e emocional para enfrentar aquelas realidades, que se surpreendem com refugiados bem vestidos demandando beber água mineral engarrafada.

Milo Rau investe na parametrização de uma estética da tragédia contemporânea que faz o desvelamento para o público dos seus dispositivos eficientes. No caso de “Compaixão. A história da metralhadora”, a posse do tempo de fala – dispositivo tão elementar no teatro – é a mais bem elaborada metáfora do persistente desequilíbrio de forças que as estruturas vigentes fazem perpetuar sob a fachada do humanismo eurocêntrico.

A estrutura da peça escancara como a dominação se faz perpetuar: concedendo espaço ao periférico, mas apenas marginalmente, pois a centralidade discursiva é branca, europeia, normatizadora e autoindulgente.

Mas, me parece, que é justamente ao exibir sua autoridade de encenador sobre o tempo e o espaço do que acontece no palco que Milo Rau extravasa com malícia o “cinismo” dos seus procedimentos de criação. Ele está nos dizendo que também o teatro é uma metralhadora.
(Renata Cazarini)