MULHERES TECENDO HISTÓRIAS: AULA 3 [23.03.19]


“Escrever é inaugurar um olhar para as coisas”.
(Marcelino Freire)

Eu me recordo de, ainda adolescente, ter tentado a empreitada de ler o dicionário. Eu tinha entrado em contato com um relato desse tipo, de alguém que tinha lido o dicionário, e achei, à época, que seria bom aprender assim. Foi uma tentativa vã. Durou uma página ou duas. Mas o dicionário é o meu fiel escudeiro. A tecnologia de hoje me permite fazer a consulta online ao Houaiss Eletrônico (embora tenha que assinar o UOL para isso) e me seria impossível fazer um trabalho de escrita, mais ou menos decente, sem ele. Vale agradecer à equipe que o mantém – até certo ponto – atualizado.

Há dicionários e dicionários. O que o poeta Marcelino Freire nos entregou neste sábado, no nosso terceiro encontro, vale muito mais do que o mínimo volume de verbetes que contém. Aliás, a partir de agora, como adentramos o mundo da lexicografia criativa, é melhor consultar o dicionário:

verbete (1881 cf. CA1) ortoépia: ê
substantivo masculino
1 nota ou comentário que foi registrado, anotado; apontamento, nota, anotação, registro
2 (1881) pequeno papel em que se escreve um apontamento
3 ficha de arquivo (p.ex., em biblioteca)
4 (a1947) em lexicografia, o conjunto das acepções, exemplos e outras informações pertinentes contido numa entrada de dicionário, enciclopédia, glossário etc.

E, para fazer o serviço completo, segue este:

lexicografia (1813 cf. AVDicPE2) ortoépia: cs

substantivo feminino LEX, LING
1 técnica de feitura de dicionários
2 p.met. o trabalho de elaboração de dicionários, vocabulários e afins
3 análise teórica desse trabalho
4 estudo científico e analítico das técnicas de elaboração dos dicionários (p.ex., sobre os princípios de seleção do vocabulário, de classificação dos vocábulos, de definição e descrição dos significados etc.) tais conceitos excluem o de realização dos dicionários; cf. dicionarística e lexicologia

O que Marcelino Freire nos entregou foi uma folha reproduzindo o seguinte poema de José Paulo Paes. A chave de leitura é o olhar inaugural do poeta paulista sobre coisas banais:

DICIONÁRIO
A – Aulas: período de interrupção das férias.
B – Berro: o som produzido pelo martelo quando bate no dedo da gente.
C – Caveira: a cara da gente quando a gente não for mais gente.
D – Dedo: parte do corpo que não deve ter muita intimidade com o nariz.
E – Excelente: lente muito boa.
F – Forro: o lado de fora do lado de dentro.
G – Girafa: bicho que, quando tem dor de garganta, é um deus-nos-acuda.
H – Hoje: o ontem de amanhã ou o amanhã de ontem.
I – Isca: cavalo de Troia para peixe.
J – Janela: porta de ladrão.
[K – está ausente]
L – Luz: coisa que se apaga, mas não com borracha.
M – Minhoca: cobra no jardim-de-infância.
N – Nuvem: algodão que chove.
O – Ovo: filho da galinha que foi mãe dela.
P – Pulo: esporte inventado pelos buracos.
Q – Queixo: parte do corpo que depois de um soco vira queixa.
R – Rei: cara que ganhou coroa.
S – Sopapo: o que acontece quando só papo não adianta.
T – Tombo: o que acontece entre o escorregão e o palavrão.
U – Urgente: gente com pressa.
V – Vagalume: besouro guarda-noturno.
[W – está ausente]
X – Xará: um outro que sou eu.
[Y – está ausente]
Z – Zebra: bicho que toma sol atrás das grades.

“A poesia está, sobretudo, em inaugurar um olhar para as coisas,
inaugurar um sentido, não ficar no lugar comum”.
(Marcelino Freire)

A tarefa a ser entregue na terceira aula era parte dessa atividade – nova pra mim e, creio, pro nosso grupo de “vivência literária”, nas belas palavras da Marlei – da lexicografia criativa.  Coube a mim o “Dicionário cheio de beijos”, que ficou assim, sem revisão, feito ao longo da semana à medida que algumas ideias se impunham e outras só vinham tiradas a fórceps:

DICIONÁRIO CHEIO DE BEIJOS A  Z
Melhor inverter o dicionário pra evitar o beijo de amor logo de cara,
pois o “A” leva a isso. Então, vou começar com o “Z”.

Z de zoeira: beijo de zoeira pipoca muito no Carnaval de Salvador.
Y: beijo You Too ou U2. Ô beijo Bono!
X: beijo do xote, também chamado “Ai que saudade d’ocê”. (ouça aqui)
W: beijo Wanderley é aquele que a gente nunca sabe se Valeu por um ou se VValeu por dois.
V de vapor: beijo que vai formando uma bolha de ar quente e úmido em volta da gente igual sauna a vapor com essência de eucalipto.
U: beijo do ultimato. Em geral, vem seguido de um “adeus, nunca mais”.
T: beijo tomara que dê certo! Tá todo mundo na torcida!
S: selinho. Ver B, de bitoca.
R: beijo relutante. Roça, resvala, mas não resulta em nada.
Q: Quem me dera um beijo teu!
P: beijo profundo é quando tem alguém te engolindo.
O: beijo oportunista não tem amor, nem tem paixão, só ocasião.
N: beijo non-sense. Será que aquilo foi um beijo?
M: beijo monogâmico. Não tem pra mais ninguém!
L: lambida é beijo também.
K: Kiss or die!
J: beijo com jeito.
I: beijo das impossibilidades. Impossível de prever, impossível de conter, não posso parar...
H: beijo com higiene depende de escova de dente, fio dental e refrescante bucal.
G: gostoso mesmo é beijo molhado.
F: faz de conta que é beijo é o que se faz em Hollywood.
E: beijos EMOJI.
D: beijo demorado. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13...
C: combinado de beijo. Opção 1: amor com afeto [   ] 
Opção 2: paixão com pimenta [  ] 
Opção 3: combina 1 e 2 [  ]
B: bitoca. O mais rápido beij..
A de Abujamra: Antônio Abujamra.
“Ah, juventude! E eu não beijei todas as bocas”.

O QUE VEIO ANTES

Antes disso, nossa sessão ainda teve leituras dos 15 itens da infância. Vou reproduzir, com permissão da autora, o texto de Márcia Traldi, relato feito só de falas. Cruzar falas, sem explicar muito bem de onde elas vêm, é um recurso valioso no texto, explicou o nosso poeta-mestre.

Vamos Brincar
Vamos brincar !?!?!
Valendo !!!
Finge que ...
Ganhei !!!
Conta uma história ?.....
Por que tem gente que mora na rua e
fica revirando lixo e pedindo dinheiro?...
Vem comer menina!
Vamos brincar !?!?!
Tá com quem ?
Vó, o moço dos sonhos tá chegando !!!
Quero placa 2 e a cor azul.
Adolecá le peti peti pola.....
Eu vou ser astronauta !
Por que tudo custa dinheiro?
Vem tomar banho filha !
Vamos brincar !?!?!
Não valeu !
Gente,  um tatu bola!!!
Senhoras e senhores a apresentação vai começar !!!!!
Oba , o vovô chegou !!!!
Um dois três salvo !
Este é meu filho Obinelus.
Temos um leão de estimação  mansinho....
Tempo ! Parô !
Por que a gente come bicho ?
Vem estudar agora !
Vamos brincar !?!?!
Um dois três e já ...
Quer comidinha de carne moída de terra sequinha,
arroz de pedrinhas e bolo de chocolama?
Ímpar ... Par ... Eu começo !
A chuva tá quentinha ... Corre !!! Corre !!!
Era uma vez ....
Jokennnpô
O que é o que é ?
Por que adulto não brinca quase ?
Vem dormir, tá tarde !
Vamos brincar !?!?!
                                               

O QUE VEM DEPOIS
Este grupo, reunido pelo e no Itaú Cultural, está celebrando a literatura, mas penso que a vida mais do que tudo. Com sutileza única, Marcelino Freire tem nos ajudado a resgatar nosso repertório, num movimento às vezes de reconhecimento, às vezes de estranhamento das experiências relatadas por uma ou por outra destas mulheres. Há uma cartografia, que vai se desenhando, de identidades únicas, mas também gregárias, de lares singulares, mas também de bairros da cidade de São Paulo. Uma cartografia de memórias gastronômicas, lúdicas e musicais. Essa vivência se entrelaça com a literatura quando intervém, gentilmente, nosso poeta pernambucano, sentindo – mais do que sabendo – quando é hora de apresentar a nós a poesia de outros para que possamos ver em nós a poesia.

“A gente escreve porque tem coisa que só a gente sabe,
só a gente testemunhou. É o nosso repertório”.
(Marcelino Freire)

O dispositivo de resgate desses testemunhos tem sido a construção de listas. Para a quarta aula, cada uma de nós sorteou uma nova tarefa que implica listar e/ou completar uma ideia. No meu caso, a orientação é: MINHA AVÓ GOSTAVA DE (listar), SÓ NÃO GOSTAVA DE (listar). É simples coincidência, não há dúvida, mas não deixa de ser curioso que o único nome que resgatei para os 15 itens de memórias da minha infância tenha sido o da minha avó materna, Assumpta, aquela que fritava bolinhos de chuva com a chuva lá fora. Bom, ela surge de novo.

Um norte para as atividades é o poema da poeta Jarid Arraes, do livro “Um buraco com meu nome”, editado pela Ferina em 2018. A distribuição espacial do poema na página é centralizada e o texto grafado apenas com letras minúsculas.

prólogo

não sou prole de heranças
não me deixaram nada
nenhum patrimônio
nenhuma gargantilha
nem vaso de cristal
ou vestido
de noiva

não tenho raízes
sou folha solta no tempo
seca

a cor de um marrom pálido
de um bege distraído

não herdei louças
terras
sequer dúvidas

sou única no mundo

o vento
me segura