MITsp 2019: Milo Rau e a tragédia




Mas a tragédia é precisamente, em todas as minhas peças
e aqui também, a impermeabilidade traumática da violência.
Nenhuma razão, nenhuma psicologia, nenhuma explicação sociológica
pode ajudar o espectador. (Milo Rau sobre “A Repetição”)


O encenador suíço Milo Rau, artista em foco na 6ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), ambiciona construir no teatro a tragédia contemporânea. E isso não é pouco. Há histórias novas a contar, recuperando depoimentos sobre a violência, tão banalizada. Não é preciso repetir os clássicos de qualquer era já que o repertório de crimes de toda natureza é vasto.


“A Repetição. História(s) do Teatro (I)”, primeira peça de uma série que convida diferentes diretores a mostrar como se relacionam com o fazer teatral, retoma um assassinato violento ocorrido na cidade belga de Liège em 2012, quando o jovem homossexual Ihsane Jarfi foi agredido por três rapazes. Um dos atores em cena, Sébastien Foucault esteve assistindo ao julgamento enquanto outros colheram depoimentos de familiares e de um dos agressores. Mas seria limitante classificar a peça como teatro documental.


Claramente, há a tentativa de propor paradigmas para a tragédia teatral contemporânea, cumprindo os requisitos – por assim dizer – do texto fragmentário e da tecnologia audiovisual, mas também acionando dispositivos clássicos como “o fantasma”, personagem que vem ordenar justiça ou cobrar vingança. O ator de origem egípcia, naturalizado holandês, Sabri Saad el Hamus abre a peça com um monólogo acerca do fazer teatral e ilustra sua atividade com uma fala do fantasma do rei Hamlet, do Ato 1 da peça de Shakespeare.


Isso quer dizer muito. Na tragédia clássica, o fantasma dava voz ao morto. Agora é diferente. A tragédia contemporânea busca o documental para garantir voz a quem já não pode falar, sem se restringir a isso. A peça de Milo Rau parte da conversa dos atores com os agentes de um evento violento para construir uma dramaturgia que não é uma investigação forense em busca da motivação do crime nem uma explicação sociológica para a violência. É a presentificação da violência, como propõe o encenador no Manifesto Ghent: Não se trata mais de apenas retratar o mundo. É sobre transformá-lo. O objetivo não é representar o real, mas fazer a própria representação real.


A violência é explícita. A agressão que leva à morte é encenada e nutre o realismo a introdução no palco de um carro como o que os assassinos usaram para transportar a vítima.


Milo Rau fala da emergência de um “teatro democrático do real”, que resulta de uma pesquisa sobre a condição humana “fundamentalmente trágica” e sobre o poder do teatro. Num debate durante a MITsp, ele esclareceu que o evento é ficcionalizado porque os depoimentos não são mesmo 100% confiáveis. O texto encenado decorre do convívio na sala de ensaios e, assim, é atribuído a “Milo Rau e companhia”. O trabalho coletivo na construção da tragédia é o que mais importa ao encenador suíço, que acredita numa transcendência decorrente da mis-en-scène.


A tragédia clássica opera em três níveis, segundo Milo Rau: o da coincidência (lugar errado na hora errada), o do indivíduo (não é um pensamento sociológico) e o da razão (não é sem sentido). E exemplifica com “Édipo”, de Sófocles. Nisso, ela não é diferente da tragédia contemporânea, como o episódio violento de “A Repetição” traz à tona: um crime de homofobia contra o indivíduo Ihsane Jarfi numa ocasião imprevista. O que afasta uma da outra é o olhar dos deuses.
De fato, é como na tragédia antiga: as pessoas, os personagens são cegos,
se emaranham cada vez mais na miséria e na culpa,
com as quais sempre têm uma relação quase sonambúlica,
e só passam a compreender retrospectivamente.
(Milo Rau)
Repetir uma história violenta no palco, recontá-la num trabalho coletivo, é uma estratégia de superação, avalia Milo Rau. Para ele, se a transgressão criminosa faz parte da história da violência, a solidariedade que se estabelece no palco faz parte de uma história alternativa.
Dizemos algo para entender a história no próprio ato,
para superá-lo. Pode parecer um pouco romântico,
mas na verdade estou tentando encontrar transcendência.
(Milo Rau)
O interesse obsessivo da cultura contemporânea com a violência – ou com momentos de crise – revela também certo voyeurismo do público, segundo o encenador. Cobrando da plateia a consciência de sua presença no teatro, Milo Rau cria uma situação das mais contundentes ao evocar o prestigiado dramaturgo libanês de expressão francesa Wajdi Mouawad. Ele cita uma cena do monólogo “Solos” (“Seuls”), em que o ator adverte ao público que caberá a um deles salvá-lo. O ator vai subir em uma cadeira e atar uma forca em seu pescoço. Depois que empurrar a cadeira, restarão apenas 20 segundos para que alguém o salve.
***
"Pendaison" (Wajdi Mouawad)
«Depuis des années, j’avais en tête une scène que je voulais jouer moi-même dans un spectacle dont je ne connaissais rien. C’était simplement une idée, une image, un fantasme. Voici:
Un plateau vide.
Une chaise en fond de scène à l’extrémité jardín.
Une corde attachée à une perche se terminant par un nœud coulant pend au-dessus de la chaise.
Debout à l’avant-scène, X s’adresse aux spectateurs.
Un ton d’explication froid et concret.


X. Mesdames et messieurs, je m’adresse directement à vous pour expliquer ce qui va se passer à présent puisque je vais avoir besoin de l’intervention d’un volontaire. Voici: la corde qui est là est bel et bien attachée à une perche. Je vais monter sur la chaise et passer le nœud autour de mon cou pour le serrer solidement. Quand tout sera en place, je me balancerai jusqu’à ce que je parvienne à faire basculer la chaise et que mes pieds perdent leur appui. Lors des répétitions, j’ai constaté que je pouvais tenir une vingtaine de secondes avant que mes forces ne me lâchent. Au moment où la chaise tombera, j’invite un volontaire à bien vouloir monter sur scène pour venir me soutenir les jambes.
X se dirige vers la chaise. Il y grimpe.
Il passe le nœd coulant autour de son cou et le serre.
Il se balance et fait tomber la chaise.
Il tente de se soutenir en attrapant de ses mains la corde autour de son cou.
Si un spectateur intervient, il poursuivra le spectacle en sa compagnie, s’adressant à lui.
Si personne n’intervient, le personnage et l’acteur meurent, pendus en direct.»


***
Essa cena é a que o espectador leva pra casa, na atuação do excelente Tom Adjibi, que, minutos antes, havia encarnado o personagem “Gênio do Frio”, da ópera “King Arthur”, de Henry Purcell, com libreto de John Dryden, que estreou em Londres em 1691.  O espírito é invocado das profundezas, como um fantasma, e canta a seguinte ária do Ato 3:


COLD GENIUS
What power art thou, who from below
Hast made me rise unwillingly and slow
From beds of everlasting snow?
See'st thou not how stiff and wondrous old,
Far unfit to bear the bitter cold,
I can scarcely move or draw my breath?
Let me, let me freeze again to death.


Ouça aqui na voz de Andreas Scholl.


O que Milo Rau faz em “A Repetição” é o escrutínio dos vários elementos constitutivos do trágico para promover uma abordagem dupla: a da trama da realidade e a da metateatralidade. Não se trata de contar como um crime aconteceu. Trata-se de repetir um evento trágico numa forma artística que pressupõe um palco e uma plateia, mas cuja plasticidade está sendo testada a cada momento pelo diálogo, pela fala dirigida diretamente ao espectador, pela técnica audiovisual, pelo exercício documental e autobiográfico. Milo Rau mostra que a tragédia contemporânea no palco é desregrada, no melhor dos sentidos.


Leia esta excelente crítica de Charlotte De Somviele sobre “A Repetição” (em inglês).

ADENDO:
O diretor publicou recentemente no seu site esta notícia acerca do Brasil.