MULHERES TECENDO HISTÓRIAS: AULA 2 [16.03.19]


“As coisas, as pessoas têm nome. É muito importante dar nomes às coisas”.
(Marcelino Freire)


“Dar nomes aos bois”. Todo brasileiro entende bem o que isso quer dizer, mesmo assim está dicionarizado caso um natural do país, desavisado, ou um estrangeiro se perca na expressão. Diz o Dicionário Houaiss Eletrônico:

dar n. aos bois fraseologia infrm.
1 fig. dizer claramente (algo que estava apenas sendo insinuado)
2 fig. nomear claramente as pessoas cujos nomes estão sendo omitidos numa determinada ocorrência, caso, etc.


A lição do dia – que parece tão óbvia e, no entanto, não é – manda assumir e nomear o repertório da sua vida.  Digo: você, da sua; eu, da minha. Manuel Bandeira, o poeta de Pernambuco, enraizado no Rio, fazia assim. Dava nomes aos bois. No poema “Infância”, sem vergonha, o eu-poético revelou:

Uma noite a menina me tirou da roda de coelho-sai,
me levou, imperiosa e ofegante,
para um desvão da casa de dona Aninha Viegas,
levantou a sainha e disse “mete”.
Não tem pudor esse poeta, que vai contando, assim, a toda a gente onde cometia – ou não – seus pequenos pecados. E essa dona Aninha Viegas, que tem ela a ver com a história da infância desse poeta? Que casa? Que desvão? Que mulher é essa? Bom, ela é Aninha, não é Dona Ana, nem Donana. Franzina, talvez? Ou só íntima? O diminutivo, em português, pode ser carinhoso ou depreciativo. Dar nomes aos bois é coisa sensível. Muito sensível.


Outra área bem delicada é atribuir qualidades: o adjetivo deve ser preciso, exato. É o caso, nos faz ver um poeta pernambucano noutro poeta pernambucano, de “imperiosa e ofegante”. Dois adjetivos que revelam tudo sobre essa menina, que não sei se é loira ou morena, mas, com certeza, é decidida e ansiosa.


Nada disso assusta Manuel Bandeira, destemido ele também, como afirma em “Infância”:


Com dez anos vim para o Rio.
Conhecia a vida em suas verdades essenciais.
Estava maduro para o sofrimento
e para a poesia.
Sair do geral para o essencial. A lição da aula anterior tinha sido fazer uma lista de 15 itens da infância. Eu tinha feito a minha:
  1. guerrinha de mamona
  2. brincar de Playmobil
  3. bolinho de chuva da minha avó
  4. esperando a manga cair do pé
  5. goiaba branca com bigato [Meus deuses! “Bigato” não está dicionarizado!]
  6. chupar cana de açúcar
  7. o uniforme da escola
  8. colar decalque no caderno
  9. fazer nhoque com minha mãe e irmãos no domingo
  10. comprar material escolar no início do ano
  11. colecionar figurinhas
  12. quermesse de igreja
  13. passeio no zoológico
  14. ver Branca de Neve no cinema
  15. ouvir a coleção Disquinho na vitrola

Então, depois da luz que explode dos olhos de Marcelino Freire ao nos contar as coisas mais simples de maneira que tudo parece inaudito, tentei atar esses itens. Mas nome, quase nenhum. Não é trivial abrir o álbum das figurinhas da minha vida.


A CHAVE DO BAÚ


Guerrinha de mamona,
brincar de Playmobil,
o chuá da frigideira quando Assumpta,
minha avó,
fritava bolinho de chuva com a chuva lá fora.


Também esperar a manga despencar do pé: pá-bum!
E bicho de goiaba branca? Deus me livre!
Chupar e mastigar cana de açúcar:
daí a gente não consegue assoviar, não.


Uniforme da escola igualando cada um
a todo mundo.
No caderno, um decalque diferente
pra cada dever de casa.


No domingo, amassar batata e cortar nhoque.
É tarefa de família no fim de semana.


Caderno, lápis de cor, giz de cera, borracha, apontador.
Apontador, borracha, giz de cera, lápis de cor, tesoura.
Caderno, caderno, caderno.
Todo ano só começa com o material escolar.


E as figurinhas? Sempre na torcida pela que falta
só que nunca vem, nunca vem, nunca vem.


E quermesse da igreja.
E passeio no zoológico.
Ver Branca de Neve no cinema.
Ouvir Disquinho na vitrola...


[momento de calar]


DESSE BAÚ, EU PERDI A CHAVE.



Já Neuza (de blusa amarela na foto), uma das parceiras nesta experiência tão particular e tão coletiva, parecia querer elencar todo mundo da sua vida. Todo nome traz uma lembrança pra ela, que deixou publicar aqui seu texto:


MINHA INFÂNCIA QUERIDA
Com 4 anos, na casa de D. Sara, o Sr. Boris, patrões de minha mãe, me pegava no colo para roubar jabuticaba do quintal do vizinho.
Adorava ir de bonde para o serviço de minha mãe.
Aos 6 anos, fiquei na casa de D. Rogéria, que cuidava de mim para minha mãe trabalhar.
Brincava na casa da D. Terezinha.
Fui novamente junto com minha mãe, aos 7 anos, para o serviço dela e transferida para a escola Santa Mônica, na Rua Augusta.
Quanta saudade do quintal de Dona Genésia, onde éramos mais ou menos 30 crianças correndo, gritando naquele quintal cheio de árvores frutíferas.
Meu pai, muito severo com meus dois irmãos adolescentes, que ficavam até tarde na rua (aliás, tarde na concepção do meu pai eram 20 horas), não tínhamos rádio nem TV.
Tive uma infância sofrida, mas foi bem vivida e sobrevivi.


“Escrever poesia é dar um beijo no tempo e voltar”.
(Marcelino Freire)


Pra próxima aula, a lição é criar um dicionário. Foi sorteio. A mim coube um “Dicionário cheio de beijos”.