“ÍTACA. NOSSA ODISSEIA I” [COMENTÁRIO]
Por Adriane da Silva Duarte*
Segunda grande montagem esse ano
em São Paulo inspirada na Odisseia, Ítaca Nossa Odisseia I confirma a
centralidade do poema de Homero para a compreensão do mundo em que vivemos. Christiane
Jatahy encena o tempo da espera (e não o da aventura, em que o herói enfrenta
criaturas fantásticas para alcançar sua terra natal) em duas estações. A
primeira, “Ítaca”, traz Penélope (ou melhor, Penélopes no plural já que são
três as atrizes a representar a esposa de Odisseu/Ulisses) esperando que o
herói finalmente regresse da guerra travada na longínqua Troia. Os pretendentes
instalados em sua casa a assediam constantemente e lhe consomem os bens. A
segunda, “A caminho de Ítaca”, traz Ulisses (também representado por três
atores) prisioneiro na ilha de Calipso (e, em grande medida, presa das
lembranças de guerra, que o atormentam), esperando o momento de retomar sua
viagem de volta para casa. Calipso, por sua vez, vive a iminência da partida de
seu amado, que parece certa após um convívio que já dura sete anos. Duas
estações porque a encenação é simultânea em palcos separados por uma cortina para
plateias distintas – o que exige uma logística algo complexa para transposição
do público ordenadamente de uma plateia para outra numa solução curiosa em que
o espectador é que se põe em movimento. Há, no entanto, uma penetração de um
ambiente no outro nos sons e falas que se escuta e nos vultos destacados pela
luz na cortina. Tudo intencional, de modo a compor a atmosfera cênica.
Da perspectiva de uma helenista,
gosto dessa proposta por evocar uma solução narrativa do próprio poema que se
abre com o foco em Ítaca e nos efeitos que a ausência de Odisseu provoca para
Penélope e Telêmaco, e, no canto V, focaliza o herói e sua relação com Calipso.
As ações, narradas sequencialmente, ocorrem simultaneamente. Ou seja, enquanto
Odisseu desfruta da companhia de Calipso, Penélope está entregue aos abusos dos
pretendentes. O desdobramento dos personagens em diferentes atores também me
agrada porque sugere a presença de diversas linhas narrativas que se perderam
na consolidação do poema, decorrente da estabilização da forma escrita. Assim,
por exemplo, pressupõe-se que haveria uma vertente abandonada do poema em que
Penélope corresponderia à atenção dos pretendentes. Traço disso estaria nas
cenas em que ela se enfeita e se exibe diante deles para ser cortejada, o que
causa certa perplexidade entre os leitores convictos de seu caráter fiel (que
de resto é predominante no poema). Também explicaria porque Odisseu reluta
tanto a dar-se a conhecer a sua esposa, cuja indiscrição temeria (o exemplo de
Clitemnestra, a esposa infiel de Agamêmnon, é constantemente evocado). Na peça,
cada Penélope tem uma natureza diversa. Há a que parece divertir-se com os
pretendentes e até considerar uma aliança com eles, entregando-se a uma tensa
DR. Há a que chora convulsivamente a ausência do marido. Tudo isso numa roupagem
bastante contemporânea, com direito a trilha sonora embalada por Caetano
Veloso.
A simetria entre essas duas estações
é bem marcada no cenário (a disposição de mesas e sofás que compõem as “casas” de
Penélope e Calipso), mas ainda mais no espelhamento da situação vivida pelo
casal, ambos de certa forma assediados – Penélope pelos pretendentes, Ulisses
por Calipso, com todas as nuances desses relacionamentos complexos. A peça
explora bem esse paralelo, que de resto já está também no poema de Homero.
O jogo especular atinge o ápice
naquele que poderia ser considerado o segundo ato dessa peça em que se encena o
retorno de Ulisses(es) e seu (des-)encontro com Penélope(s). Então ergue-se a
cortina e o horizonte se abre de modo que uma plateia avista a outra como se
refletida num espelho, causando um certo estranhamento – por um instante
pensamos estar refletidos lá no fundo, mas sabemos que não somos nós, lá estão
outros que agora fazem parte do espetáculo de alguma maneira, e o mesmo
acontece conosco da perspectiva deles. Assim como com os personagens,
duplica-se o público. Agora a cena toda é o salão do palácio de Ulisses em
Ítaca. Mas nem tudo está integrado, há uma zona fronteiriça que marca a
distância, não mais geográfica, entre os personagens. A separação é dada pela
água que inunda tudo, colocando entre eles um verdadeiro oceano – das lágrimas
derramadas por Penélope, dos mares atravessados por Ulisses. Não se pode dizer
que não houve aviso. Uma legenda no início da peça advertia: “Ela quer mudança.
Ele quer que ela o aceite”. Quando finalmente estão frente a frente (um momento
potencializado pelo recurso à filmagem em tempo real, que projeta os rostos dos
atores em close, mas que também é um filtro que amplifica o fosso que existe
entre eles), ele clama por reconhecimento (“Sou eu, Penélope, Ulisses,
reconhece-me”) e ela o renega (“Não, você não é ele”). A espera foi em vão. Em Ítaca Nossa Odisseia I, não há
reconhecimento possível: a guerra mudou Ulisses; a solidão, Penélope. É o fim,
as luzes caem. Ficamos, de certa forma, desamparados. Prevalece a aporia.
Há um intertexto político claro e
alusivo ao momento brasileiro – não só, a crise migratória também é uma questão,
clara já no bilinguismo da produção franco-brasileira, mas não vou desenvolver
isso aqui. Ítaca surge como uma alegoria do Brasil de hoje, imerso num vazio de
poder e explorado por uma elite predatória (os pretendentes). Penélope figura a
pátria-mãe, pressionada a escolher um desses para firmar uma aliança e governar,
o que remete ao contexto pré-eleitoral que vivemos – os atores mesmos provocam
a audiência com alusões ao pleito. A data mesma da chegada de Ulisses a Ítaca
não poderia ser mais simbólica, 7 de outubro de 2018, coincidindo com a
realização do primeiro turno. Ela, ao mesmo tempo, quer garantir o sustento de
“seus filhos” (não Telêmaco, como esclarece, mas todos nós, espectadores,
equalizados aos desafortunados cidadãos dessa ilha sem governo), mas, ainda que
algo cética, aposta no retorno de Ulisses, o antigo rei em um passado remoto e
afortunado. Não há como não pensar em Lula e no slogan do PT para essa eleição:
“O Brasil feliz de novo”. Aliás é sugestivo que Ulisses esteja como que “preso”
de Calipso em Ogígia e alijado do governo. Mas Ulisses, quando finalmente
volta, não corresponde à expectativa. Sua volta só faz potencializar o caos e a
violência. Não há saída fácil, infelizmente.
Margaret
Atwood
As alusões às doze enforcadas,
vistas em sonho por Penélope(s) e Calipso, podem soar crípticas para a maior
parte dos espectadores, mesmo os familiarizados com a Odisseia, em que constituem um motivo menor. Depois de matar os
pretendentes, emboscados no salão de banquete, Ulisses faz enforcar as dozes
servas do palácio que se uniram aos pretendentes, traindo a casa e Penélope –
teriam sido elas que revelaram a estratégia de retardar as bodas destecendo à
noite a mortalha que ela tecia de dia. As doze enforcadas dizem respeito mais
ao romance Penelopeida (The Penelopiad, em português, A Odisseia de Penélope), de Margaret
Atwood, em que a narrativa é conduzida do ponto de vista de Penélope, um olhar
feminino, portanto. Ela censura Odisseu pela morte das servas, alegando que
estavam a seu serviço, espionando os pretendentes. A violência contra elas é
injustificada e abominável. Há mesmo um capítulo dedicado ao julgamento do
herói no Hades pelas almas das enforcadas. Dada a relevância da categoria de
gênero hoje e o relevo de Margaret Atwood assumiu nesse debate, a Odisseia parece não mais poder ser
contada sem esse intertexto.
Caetano
Veloso
Também Caetano Veloso tem marcado
lugar na trilha sonora das Odisseias
no Brasil. Na Odisseia da CIA Hiato
(ver meu post),
Quereres ganha destaque na voz de
Luciana Paes/Calipso; em Ítaca Nossa
Odisseia I, a escolha foi por Maria
Betânia, do álbum Caetano Veloso (1971), que reúne canções do exílio,
também lindamente interpretada por uma das atrizes.
*Adriane da Silva Duarte é professora de Língua e Literatura Grega na Universidade de São Paulo (USP), atuando na graduação e na pós-graduação. Coordena, com a Profa. Dra. Zélia de Almeida Cardoso, o Grupo de Pesquisa “Estudos sobre o Teatro Antigo”, fundado em 2002. É tradutora de Aristófanes: “As Aves” (Hucitec, 2000) e “Duas Comédias: Lisístrata e As Tesmoforiantes” (Martins Fontes, 2005), entre outras publicações.