POR QUE HÉCUBA
Por Clara Crepaldi*
Comentário
Segundo Matéi Visniec,
"os deuses do nosso tempo são os altos escalões das finanças
internacionais, essas personagens que vemos raramente, esses fantasmas
elegantes que se escondem nas esferas de decisões sofisticadas sem ter nenhum
contato com o mundo dos ‘mortais’". Igualando esses deuses à elite dos
camarotes, Meirelles traduz o problema em termos familiares, talvez tão
familiares que já esvaziados, visto já ser corriqueira, especialmente nos
palcos baianos, a metáfora do Carnaval como emblema do fosso entre classes
sociais e como símbolo da precariedade de nossa democracia. Mais contundente é
a imagem da Hécuba-cadela para sempre ganindo sobre as ruínas do que um dia foi
Troia e para sempre reencenando o seu infortúnio diante de visitantes tais como
o pastor e a jovem do início da peça e tal como o próprio público do
espetáculo, que, mais de dois milênios depois de Eurípides, ainda assiste à
tragédia de Hécuba. (Clara Crepaldi)
Mito: Hécuba
Texto: Matéi Visniec
Encenação: Marcio Meirelles
Temporada: 19.07.18 a 05.08.18
Local: Teatro Vila Velha,
Salvador - BA
Elenco: Chica Carelli, Andréa
Nunes, Apoena Serrat, Celso Jr., Grazielle Mascarenhas, Igor Epifânio, Jarbas
Oliver, Wanderley Meira, Yan Britto, Alex Bruno, Amanda Cervilho, Ariel
Oliveira, Camila Castro, Daiane Martins, Eduardo Serra, Eron Pimenta, Fernanda
Beltrão, Fernando Budokan, Hugo Bastos, Iracema Vilaronga, Leo Sclark, Lia
Nascimento, Loiá Fernandes, Meniky Marla, Milena Nascimento, Rafael Souza,
Rodrigo Lelis
Assistido em: 21.07.18
Excerto
do programa:
ESPELHO
PARA CEGOS
a
guerra de troia nos serve p ara falar dos
deuses
q
nos governam em camarotes de carnaval
de
um coro de profissionais da notícia
e
da subserviência ao poder do mercado e do consumo
manipulados
pelos deuses
hécuba
somos nós mudos ou ladrando e uivando
hécuba
somos nós ganindo por nossos filhos mortos
sacrificados
pelos e aos vencedores
(Marcio Meirelles)
Comentário
Ao
cair de uma noite de lua cheia, um pastor e sua filha procuram um templo de
Hera, mas só encontram ruínas. Um velho cego lhes explica que por ali passou a
guerra e que os uivos que eles escutam não são do vento, mas da cadela Hécuba,
que deve estar querendo saudar os visitantes.
Hécuba
(Chica Carelli), a rainha da Troia derrotada, recolhe no chão as cinzas dos
seus dezenove filhos mortos. Alguns são chamados por seus nomes, entre eles
Páris, Heitor e Troilus e também Herzog, Marighella, Lamarca e Marielle. Cada
monte de cinzas é um saco plástico de latinhas de cerveja recolhidas no
Carnaval baiano, ocasião em que Hécuba vai ganir contra os deuses de um
camarote olímpico.
A
encenação de Marcio Meirelles parte do texto do dramaturgo romeno Matéi
Visniec:
"Por que Hécuba é uma peça sobre a
violência, como Hécuba de Eurípides.
Mas, na minha, o olhar vai além, além do sofrimento e da vingança. Eu quis
‘empurrar’ Hécuba para a revolta. Eu quis que essa mulher, fruto da mitologia
grega, interpelasse os deuses e, com isso, os próprios fundamentos da nossa
civilização. Pois o verdadeiro debate está aí: por que construímos tantas
coisas sobre o sangue e a violência, sobre a guerra e o sofrimento?"
(Aspas de Visniec)
Transposta
ao Carnaval de Salvador, os deuses são a elite que assiste à festa de cima do
camarote Olimpo, e é como celebridades ou artistas populares que eles se
comportam: afetam animação, dançam espalhafatosamente e com sensualidade e acenam
para os pobres mortais lá embaixo. A entrada desses personagens é, aliás, um
dos grandes momentos de comicidade da peça, assim como a intervenção final de
Hermes. Um pouco como na Ilíada, os
deuses de Por que Hécuba, ainda que
retratados com ironia, não compartilham das misérias dos mortais e, portanto,
são aqueles que trazem certo alívio cômico à ação. Ao fim, quando confrontados
por Hécuba, esses deuses do camarote agem como verdadeiras celebridades fúteis
diante de uma crise de relações públicas e tentam abafar as acusações, entre
cochichos e com irritação. Segundo Meirelles, "os deuses ocupam o espaço
reservado aos mais vips, enquanto o coro, que mantém e deseja o lugar dos
‘deuses’, ocupa o espaço dos mortais. São nossas elites observando e
manipulando o destino dos que não têm acesso aos camarotes."
O
coro, por sua vez, é composto por timbaleiras e timbaleiros, caracterizados
pelas pinturas corporais típicas e óculos escuros. O espetáculo tem música
original de Aline Falcão, baseada em "modos nordestinos e turcos".
Na
parte dramática, é especialmente comovente o diálogo entre Hécuba e Polidoro
(Ariel Oliveira). Nu e trêmulo, o filho da rainha entra em cena para contar,
com ternura e tristeza, o modo como foi assassinado por Polimestor. Além de o
texto ser belíssimo, o ator que interpreta Polidoro faz um ótimo trabalho de
corpo e imprime delicadeza e doçura às falas mais desoladoras.
Não
é apenas nas menções aos nomes de vítimas da violência da nossa história
recente que a peça aborda questões contemporâneas. Imagens em um telão também
mostram cenas de guerra, a encenação de suicídio de Herzog, a campanha política
de Marielle Franco. Escrita em 2013 e encenada por Meirelles pela primeira vez
em 2014, essa temporada de Por que Hécuba
foi, nos dizeres do diretor, uma reposição, que agora responde a novas questões
do momento em que vivemos. Explica Meirelles: "em 2014 o golpe era apenas
uma ameaça q não foi contida. era previsível mas era evitável? não saberemos. n
foi evitado. os deuses continuaram urdindo sua tragédia sobre o povo
brasileiro. sobre a humanidade. isso será percebido na peça agora reposta.
podemos clamar nos debater. morder. poderemos ser transformados em cães e
agiremos como cães? morderemos uivaremos rugiremos atacaremos lamberemos as
mãos abanaremos os rabos seremos os melhores amigos do homem ganiremos sob o
jugo de nossos opressores? temos alternativas. atacaremos? as mortes dos filhos
de hécuba e suas cinzas nos soterrarão? aguentaremos? sobreviveremos à prisão à
escravidão à usurpação de nossos direitos conquistados com tanta luta à
destruição de nossa bela Ílion? abriremos os portões para o cavalo entrar e nos
destruir aniquilar nossos bens nossas riquezas? seguiremos uivando noite afora
por que por que por que por que por que? ou vamos descobrir quem são os deuses
q nos controlam ou nossos uivos encontrarão respostas?"
*Clara Crepaldi Professora substituta de língua e literatura grega na Universidade Federal da Bahia. Possui graduação em Letras Clássicas com habilitação em grego e latim pela Universidade Federal da Bahia (2009), mestrado em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (2013) e doutorado em Letras Clássicas também pela Universidade de São Paulo (2018). Em 2017, fez estágio de doutorado-sanduíche na Vrije Universiteit de Amsterdam. Traduziu para o português as “Fábulas de Esopo” (Martin Claret, 2017) e as tragédias “Helena” (FFLCH, 2015), “Alceste, Heraclidas e Hipólito” (Martin Claret, 2017). Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: Eurípides, tragédia grega, linguística do grego antigo, linguística histórica, filologia textual, tradução..