“Odisseia” da Cia. Hiato [COMENTÁRIO]


Por Adriane da Silva Duarte* 

Em coluna publicada na Ilustríssima, Christian Schwartz anuncia a morte da biografia, ao menos como a conhecemos (A morte da biografia?, Folha de São Paulo, 24/06/2018, p.2). Esgotados os livros sobre reis e artistas, o interesse agora recai sobre o homem comum, de modo que a vida de qualquer pessoa, desde que convide uma narrativa, pode inspirar um relato biográfico. 

É bem isso que propõe a Cia. Hiato na sua apropriação da “Odisseia”, em que o foco é deslocado do herói polythropos, para os personagens “secundários”, que respondem à presença ou, como é mais frequente, à ausência de Odisseu. 

Esses personagens, Penélope, Telêmaco, Calipso, Circe, Atena, são transpostos para o século XXI através das memórias e experiências coletivas (o discurso de ódio que transbordou das redes sociais e contaminou a cordialidade brasileira, p. ex.) e a dos atores da Companhia.  

Sei que o procedimento de mesclar elementos biográficos dos atores com situações ficcionais, ou melhor a ficcionalização de experiências reais, está no cerne do trabalho desenvolvido pela Companhia e já bastante presente nas montagens anteriores, mas aqui vou me ater apenas e tão somente a essa “adaptação” do poema homérico. 

Um momento da peça é emblemático dessa prática. No centro do palco-arena está uma cadeira e um microfone, no telão se lê em letras garrafais: MICROFONE ABERTO. Depois de um momento de hesitação sem que ninguém se apresente, um espectador, já previamente cooptado (essa é uma questão à parte: o público não parece tão disposto a participar, a não ser das comidinhas, do baile e do karaokê, manifestações coletivas e com menor grau de exposição, assim há um arranjo prévio em que os atores procuram garantir quem assuma, caso não haja voluntários),  ocupa o lugar. 

O ator (Thiago Amaral) dirige a cena, que começa como um interrogatório: nome? onde nasceu? etc. Pergunta então: Você é um homem ordinário ou extraordinário? E o sujeito, uma criatura banal, gente como a gente, responde: extraordinário! (Isso, claro, na sessão a que assisti). Imaginação minha, ou senti um certo desconforto do ator? Afinal, a ideia era celebrar o homem ordinário e suas histórias banais e levá-lo a fazer coisas extraordinárias, como, sendo um Ninguém (o leitor de Homero saberá exatamente do que se trata), enfrentar e matar o Ciclope, entoando um catártico coro de estádio de futebol: Hei, Ciclope vai tomar no **!  

O ponto é que o homem comum se quer extraordinário, talvez pelo efeito dos holofotes e de ocupar o centro do palco. E quem não? Estariam mesmo esgotadas as narrativas sobre reis e heróis? De qualquer maneira, nesse momento se leva ao máximo o pressuposto, e maior sacada da peça, explicitado já na entrada, quando uma Penélope (Aline Filócomo) de dentes arreganhados, sorriso e rosnado ao mesmo tempo, recepciona o público com um “que bom te ver te volta!”, o de que Odisseu somos nós, os espectadores da peça, que retornamos à Ítaca cênica saídos de nossas aventuras particulares e anônimas. 

O ponto de partida, e eixo organizador de todo o espetáculo, é a história pessoal de um de seus componentes, a produtora Aura Cunha, que ressoa a de Telêmaco. Ela é o ponto de contato com o público, funcionando à maneira do coro grego. O coro era composto por cidadãos, amadores, portanto, que ensaiavam para se apresentar em um festival determinado, atuando ao lado de atores, esses, sim, profissionais. 

Ela, por mais que não tenha a formação de ator, cumpre noite após noite um papel fixo nessa peça, o de contar a história do seu pai, de como ele saiu de casa e das consequências de sua ausência. Assim, ela é o ponto de convergência entre os atores da Hiato e o espectador que se oferece para assumir um papel na peça por uma única noite (o do Odisseu que abandona Calipso, por exemplo). 

A história pessoal, já forte, ganha com a leitura/dramatização (pela atriz Fernanda Stefansky) da carta que a mãe de Aura (uma das Penélopes da peça) escreveu para o marido refletindo sobre a separação. É em torno dessa narrativa potente que se estrutura essa “Odisseia”, tanto é que a carta volta, reescrita, no segundo ato – dá para dividir a peça em três “atos” a partir dos dois intervalos. 

Na sequência, também como história pessoal, é apresentada a narrativa de um romance fracassado da atriz Luciana Paes, que incorpora Calipso, a ninfa abandonada por Odisseu em sua escolha de retornar a Ítaca e, por tabela, a Penélope. A peça dramática é bastante intensa, embora descambe para uma ego trip, mas peca pela extensão – o que é um problema numa peça que bate as quatro horas de duração. 

Penso que depois disso, na volta do intervalo, tudo fica mais frouxo. Curiosamente, ganha terreno aqui a dramaturgia – estou usando no sentido tradicional do texto teatral, do ato de escrever peças de teatro. 

A retomada da carta, uma tentativa de transpor do particular para o social a experiência narrada previamente, soa como uma paródia desbotada. A atriz (Fernanda Stefansky), posta sobre uma plataforma, que sugere o ex-machinado teatro antigo (expectativa frustrada, já que nada nela indica a deusa), personifica a carta ela mesma num discurso repetitivo e enfraquecido.  

Na sequência, o hipererotismo da Circe sadomasoquista de Maria Amélia Farah, que ecoa os arroubos eróticos de Calipso, me soa despropositado. É certo que a figura homérica estabelece jogos de poder amoroso com Odisseu, mas não se reduz a essa dimensão, sendo antes marcada pela magia que opera. 

Por fim Atena furibunda (Paula Picarelli), derrama seu discurso de ódio, em que tenta dar a resposta a uma das questões mais chocantes do poema para os leitores do século XXI: o massacre dos 104 pretendentes de Penélope por Odisseu. Se a atuação das atrizes (Circe e Atena) é impactante, o texto deixa a desejar. 

Novo intervalo. Público já visivelmente cansado depois de três horas e meia de espetáculo – ao menos falo por mim. Um jantar restaurador é servido: sopa fumegante, pinga, pão com azeite. Enquanto o público tenta se refazer, Penélope (Aline Filócomo) assume o palco e dá início a um karaokê em que se sucedem músicas de “sofrência”, em sentido amplo. 

A cena de Penélope sozinha no palco (na verdade ela se faz acompanhar do cão Argos, outro símbolo de fidelidade no poema, de quem se assume um duplo), transmutado em casa graças a um traçado em giz no chão, enquanto corre o festim do público ao fundo (equiparado aqui aos pretendentes), dando vazão à sua dor, oferece uma imagem poderosa da esposa de Odisseu, condenada a uma espera que já dura vinte anos. 

O lamento (cantado) traz de volta os Odisseus-público do festim e dá-se o reconhecimento e o reencontro, onde a efusão inicial dá logo lugar ao ressentimento – tudo um pouco histérico demais. 

Penélope queixa-se de ter desperdiçado sua vida na espera de alguém que realmente viveu aventuras e que, quando volta, espera encontrar tudo como antes sem sequer procurar saber o que se passou com esposa após tantos anos. A censura ao herói cabe na leitura feminista da Odisseia, que dá voz sobretudo às mulheres que ficaram à sombra de Odisseu. 

Desde o século XIX, Samuel Butler tinha detectado uma sensibilidade feminina no poema em contraposição à Ilíada, sugerindo que o poema fosse obra de uma mulher (The Authoress of the Odyssey, 1897), possibilidade descartada pela academia como fantasiosa – o que de fato é, mas não deixa de dizer algo sobre a natureza do poema. 

Recentemente, a escritora canadense Margareth Atwood, na sua Penelopeida (The Penelopiad, 2005; no Brasil, A Odisseia de Penélope, 2005), havia reescrito a Odisseia do ponto de vista daquela que fica condenada a uma longa espera, acusando Odisseu pela morte das escravas infiéis (na perspectiva dele e, não, na de Penélope). 

A leitura da Hiato está de acordo com o neofeminismo do século XXI, mas como leitora do poema devo dizer que Penélope tem sim voz ali. Se na noite que sela a reunião do casal apenas Odisseu narra suas aventuras (canto XXIII), na que antecede o massacre (canto XIX, tenso e denso), na longa entrevista que Penélope tem com o hóspede que Telêmaco acolhe em casa e que ela supostamente não sabe ser Odisseu, ela conta tudo que passou, as estratégias para adiar as novas bodas, a apreensão pela vida de Telêmaco. 

Por assim dizer, ela abre seu coração, a ponto de comentadores da Odisseia sugerirem que ou ela está flertando com o estrangeiro ou reconheceu Odisseu e não revelou por temer que as servas infiéis delatassem sua presença aos pretendentes... 

O fato é que quando finalmente celebraram o reencontro no leito, Odisseu já ouvira a história de Penélope, cabendo a ele a vez de narrar a sua. Claro que a Companhia não tem o compromisso em ser fiel a Homero, mas é falsear negar que Homero tivesse dado voz à personagem. 

Ainda assim, é forte a cena de encerramento do poema, o acerto de contas, a decisão de partir de Penélope transformada num “mini fim de partida” (peça de Beckett) em que a ameaça de ir se esvazia seguidamente ante a impossibilidade de cortar as amarras com o passado, com os (des-)afetos. A aporia final é um dos grandes acertos da montagem. Afinal Penélope traz consigo uma história, assim como Aura e Luciana. 

Contar histórias está no cerne da “Odisseia”, onde até Eumeu, o porqueiro, e Euricleia, a ama, têm histórias para contar. A polifonia promovida pela Hiato se configura como um grande acerto, como também o são o uso da música como veículo catártico e a vinculação das grandes questões do poema a problemas atuais (feminismo, discurso de ódio, crise migratória etc). 

Mas isso não apaga o desequilíbrio de tratamento entre os personagens e situações derivados do poema, menos cuidados que os desenvolvidos a partir da ficcionalização biográfica. Para mim, todo o “segundo ato” precisaria ser revisto e reduzido. Também ganharia muito se a extensão fosse menor, porque quatro horas é osso. 


*Adriane da Silva Duarte é professora de Língua e Literatura Grega na Universidade de São Paulo (USP), atuando na graduação e na pós-graduação. Coordena, com a Profa. Dra. Zélia de Almeida Cardoso, o Grupo de Pesquisa “Estudos sobre o Teatro Antigo”, fundado em 2002. É tradutora de Aristófanes: “As Aves” (Hucitec, 2000) e “Duas Comédias: Lisístrata e As Tesmoforiantes” (Martins Fontes, 2005), entre outras publicações.