Negros encenando os clássicos [COMENTÁRIO]
Fedra de Racine
Karen Amaral Sacconi*
Em São Paulo, duas encenações recentes de textos teatrais clássicos chamam a atenção por darem destaque a atores e questões negras: Medeia Mina Jeje (dramaturgia de Rudinei Borges, direção de Juliana Monteiro e atuação de Kenan Bernandes) e a Fedra de Racine (com a cia Clube Noir, dirigida por Roberto Alvim).
Na primeira, Medeia, a bárbara, converte-se na negra escravizada do séc. XVIII para exploração das minas. Como aquela, a Medeia negra da Mina Jeje tem uma natureza indômita. Ambas desafiam as forças masculinas que as subjugam. São íntimas de um mundo misterioso e temido pelo homem, que se expressa pela manipulação das ervas para enfeitiçar e envenenar, e por uma religiosidade estrangeira e estranha.
Considerando, de uma perspectiva mais ampla, a relação das obras com seus autores, vejo nas duas Medeias dois diferentes exercícios de alteridade. Lemos e assistimos a Medeia grega, claro, da perspectiva de Eurípides, pelo olhar do ateniense para o outro, a mulher bárbara. A Medeia Mina Jeje, por outro lado, foi concebida por aqueles que se identificam, de alguma forma, com a protagonista, dois negros e uma mulher. Os criadores dessa nossa Medeia negra transmutaram sabiamente o “essa mulher bárbara é o outro” em “esse outro somos nós.”
Há que se considerar, com o crescimento em voz e importância dos movimentos identitários, a diferença entre a Medeia antiga, escrita pelo tragediógrafo homem e grego, e a Medeia que temos em cena hoje, negra e escrava setecentista, mas concebida, dirigida e encenada pelo próprio negro, pela própria mulher. A diferença é o que se tem chamado, hoje em dia, lugar de fala. A ideia de que a esses pertencem a voz de uma personagem negra, algo inconcebível, naturalmente, para a antiguidade clássica.
Na segunda peça, a Fedra de Racine, a escolha dos atores negros para os papeis de Hipólito e Enone, a ama, são significativos. Sem dúvida as personagens mais importantes depois da protagonista. Mas, além disso, são duas personagens que sofrem algum tipo de injustiça da parte de Fedra, e que, na versão de Roberto Alvim, encontram na sua morte – i. e. na morte de Fedra – uma vingança catártica.
O jovem Hipólito negro é vítima não só da mentira da rainha branca, mas também – aqui um acréscimo importante do diretor – da sedução de Fedra: vão para a cama juntos. Algo aí me lembrou a nossa Carlota Joaquina e Fernando, seu amante negro.
Mas a questão da subjugação racial destaca-se mais com Enone. Longe de ser sinceramente resignada com sua condição servil, a ama, que estivera sempre curvada fisicamente em cena, revela em sua última fala a profunda dor que carrega por ter sido escravizada durante tantos anos. Revela também que percebera na fragilidade de sua senhora, apaixonada e culpada, uma oportunidade de vingança. Já no final da peça, ao ver Fedra perdida, prestes ao suicídio, a ama orgulha-se de tê-la levado à perdição através do mau aconselhamento. À medida em que se revela, Enone se eleva em seu próprio corpo. Já ereta, e encarando Fedra como igual, deixa a cena satisfeita, recuperada a sua dignidade por meio da demonstração de força contra aquela que a dominara.
Digna, sim, mas não indenizada. À certa altura, diz a ama à Fedra: “sua morte não pagará a vida que eu perdi” – naturalmente, a fala não pertence ao texto de Racine. E caberia perfeitamente na boca de Hipólito. A ideia da busca pela dignidade, ainda que todos percam, está também – penso eu – em Medeia Mina Jeje.
*Karen Amaral Sacconi é mestre em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo.