ODISSEIA da Cia. Hiato
Mito: Odisseu
Dramaturgia: escrita a partir da “Odisseia”, de Homero, por Aline Filócomo, Aura Cunha, Fernanda Stefanski, Leonardo Moreira, Luciana Paes, Maria Amélia Farah, Paula Picarelli e Thiago Amaral.
Temporada: 09.06 a 08.07.18
Local: Sesc Paulista | São Paulo (SP)
Dramaturgista: Mariana Delfini
Direção: Leonardo Moreira
Elenco: Aline Filócomo, Aura Cunha, Fernanda Stefanski, Luciana Paes, Maria Amélia Farah, Paula Picarelli e Thiago Amaral.
Duração: 270 min.
Assistido em: 09.06.18
DIVULGAÇÃO
Adaptar cenicamente a Odisseia parece uma opção natural diante dessa sua condição de grande livro matriz, manancial onde habitam múltiplas narrativas em potência. (...)
A Cia. Hiato encarou o desafio de adaptar a Odisseia com o que tinha constituído de mais genuíno nos seus dez anos de trabalho. Procedimentos de montagem que operam a formalização textual e cênica das narrativas por meio de histórias reais vividas pelos atuantes da companhia. (...)
A Odisseia da Hiato faz jus ao nome da companhia e é lacunar. Mais do que representar as ações de Odisseu, o espetáculo as circunda, apaga, omite, preferindo apresentar a sombra do herói, ou uma memória esburacada sobre si. Quem fala e age e conta são principalmente as atrizes, que encarnam Calipso, Circe, Atena, Penélope. (...)
Na Odisseia de Homero, deusas quase nunca falam e heroínas mudas aparecem pontualmente, só mencionadas pelo narrador omnisciente. Na cena da Hiato, fazem e acontecem, sempre na parceria das pulsões e corpos das atrizes.
Excertos da análise de Luiz Fernando Ramos [ECA-USP] no programa da peça.
Mais uma vez a biografia dos integrantes da Cia. Hiato serve de ponto de partida para investigações que extrapolam o debate das fronteiras fluidas do real e da ficção.
Aqui, miramos os deuses, não como modelos e sim como reflexos de quem somos – homens complicados, como diz Emily Wilson, primeira mulher a traduzir o texto para o inglês, na sua solução para definir o astucioso Odisseu.
(Mariana Delfini, dramaturgista, Divulgação)
O confronto do teatro com experiências testemunhais, o trabalho com a memória e a autobiografia, o jogo instável entre realidade e ficção e, em tempos recentes, a incorporação de pessoas comuns à criação da cena são índices inequívocos do desejo de um teatro expandido em direção à realidade, recorrente em muitos coletivos contemporâneos.
Leitura sugerida (Silvia Fernandes, profa. ECA/USP, divulgação).
COMENTÁRIO
Uma carta escrita para um Odisseu, marido e pai que partiu e não voltou, é a espinha dorsal da versão da “Odisseia” que nos apresenta a Cia. Hiato.
Cópia dessa carta me foi temporariamente confiada pela produtora da trupe, Aura Cunha, que também é Telêmaco, filho de Odisseu. Ela me disse, logo na entrada do teatro, durante a recepção com cachaça mineira que fazem os atores aos espectadores, que a carta tinha sido escrita por sua mãe e, talvez, nunca enviada; disse que eu a guardasse e que, a certa altura, me pediria a carta – o que aconteceu no primeiro, digamos, ato da encenação de quatro horas e meia, com dois intervalos, na estreia de “Odisseia” para o público.
São cem lugares, no sábado nem todos estavam ocupados: mesmo com ingressos já esgotados, certamente vale a pena ficar numa fila à espera da oportunidade de entrar se houver desistências.
Discussão que vem ocorrendo no meio teatral é a da duração dos espetáculos, pois já não é incomum que tenham 50 ou até apenas 40 minutos: rápido e fácil – e, às vezes, tem que ser mesmo isso, quando se trata, por exemplo, de um monólogo, de um breve relato de autoficção. Mas não só.
A montagem da Cia. Hiato se transforma numa experiência, menos sensorial provavelmente que a das “Bacantes” de Zé Celso (5 horas e 40 minutos com dois intervalos), mais convivial, revelando que ir ao teatro pode se realizar como uma memória de vida e não como mais um item cumprido da agenda social. Para mim, valeu cada minuto.
A “Odisseia” nos é apresentada pela Cia. Hiato em cenas performáticas, seguindo a cronologia do épico homérico, como se cantos de Telêmaco (Aura Cunha), Calipso (Luciana Paes), Circe (Maria Amélia Farah), Atena (Paula Picarelli), Penélope (Aline Filócomo).
Thiago Amaral e Fernanda Stefanski atam as linhas ao longo do espetáculo. Há um alto grau de erotismo e de exposição do corpo feminino quando estão em cena as mulheres de Odisseu. A peça tem restrição para 18 anos.
Nos intervalos, dança e karaokê com atores e espectadores. Veja o vídeo que gravei na estreia:
Muito impactante é a cena de Atena, representando as forças do ódio e da vingança: “Nunca durmo um sono eterno. A insônia não me tira forças, só as aumenta”.
Penélope (foto acima), que ameaça uma DR com o Odisseu que não se vê (e que somos todos na plateia): “Nesse folhetim barato que tá rodando o mundo, eu não tive direito a uma palavra”.
Trata-se de uma “Odisseia” que retoma o clássico para revelar como as vidas das pessoas são odisseias. "Não precisamos de heróis, mas da história do homem comum", disse o diretor Leonardo Moreira à Folha de S.Paulo.
Ouça também a entrevista à Rádio Cultura FM de São Paulo. (Renata Cazarini)