ÍTACA, NOSSA ODISSEIA I – EU VI DE NOVO!
Dramaturgia: escrita a partir de Homero “e outras inspirações”
Criação e direção: Christiane Jatahy
Temporada: 26.07 a 05.08.18
Local: Sesc Consolação/São Paulo (SP)
Elenco: Cédric Eeckhout, Isabel Teixeira, Julia Bernat, Karim Bel Kacem, Matthieu Sampeur, Stella Rabello
Duração: 120 min.
Assistido pela SEGUNDA VEZ em: 27.07.18
Comentário 2
Acertei quando decidi ver de novo, no dia seguinte à estreia,
a montagem de Christiane Jatahy da “Odisseia”. Desta vez, já alertada sobre as
duas possibilidades de ordenação da peça, optei por assistir primeiro à cena
entre as Penélopes e os pretendentes. Veja as fotos que tirei do palco – ainda
seco – e o letreiro projetado na vasta cortina de fios. Nessa cena, em que se
escancara a devastação de um país como resultado da ganância, o público é
instado a levar o que quiser do palco: o abajur vermelho, no chão, é oferecido
a alguém da plateia por um dos atores. “Pode levar”... Esse país, não nomeado,
é o Brasil.
Nesta minha segunda experiência, a peça me levou ao êxtase;
difícil dizer se em decorrência da ordem que escolhi ou se pela assimilação
facilitada por já ser a segunda vez que entrava em contato com o texto e com a
movimentação cênica. Sim, enquanto escrevo, fica mais nítido: ter conseguido
acompanhar melhor a movimentação dos atores fez a minha experiência mais
gratificante.
Trata-se de uma engenhosa
orquestração de entradas e saídas de cada um dos dois palcos em que está
dividido o espaço central do ginásio verde do Sesc Consolação, que, ao ser mais
bem reconhecida, evidencia o potencial do teatro como experiência singular,
intransponível para a tela, telinha ou telona. Uma ação que começa num dos
palcos se encerra no outro, numa contaminação entre as duas cenas – “Ítaca”
(Penélopes e os pretendentes) e “A caminho de Ítaca” (Calipsos e Odisseus) –
cuja clareza eu só tive nesta segunda experiência.
Se a duplicação dos palcos e, por
consequência, das encenações (cada uma das cenas é desempenhada duas vezes ao
longo da noite pelos atores) parece brilhante, definitivamente mais brilhante é
a proposta da contaminação entre os dois palcos, viabilizada pela cortina de
fios, pela trilha sonora de uma cena invadindo a outra em momentos exatos.
Muito acontece por trás dessa cortina, um imenso mecanismo que veio da França,
obra do Atelier de construção do Odéon-Théâtre de l’Europe, onde a peça estreou
em março de 2018. Entre a dupla cortina está a coxia do teatro e a área privada
dos cenários, local em que se faz amor e se toma banho.
A plasticidade dessa montagem
passa também pela questão linguística. Sendo um texto bilíngue
francês-português encenado originalmente para o público francófono, Christiane
Jatahy havia colocado os atores de língua francesa, representando o masculino e
europeu, frente ao estrangeiro feminino brasileiro, que tenta se aproximar, num
esforço de comunicação, do dominador. Nas montagens em Portugal e no Brasil, a
relação linguística se inverte, pois a língua de comunicação com a plateia é a
do oprimido.
Um último ponto, sobre a abordagem temática: a “Odisseia” de
Jatahy tem algo também de documental como teve a montagem da Cia. Hiato (veja nosso post) As odisseias pessoais de Kais Razouk, Godrat Arai e Nazeeh
Alsahuyny, relatos de refugiados colhidos e assimilados na dramaturgia, recebem
grande destaque.
Esta “Odisseia” parte da narrativa de Homero, mas tem também
como fontes Eyvind Johnson, autor sueco que escreveu um romance sobre a volta
de Ulisses a Ítaca, “Strändernas svall” (1946), numa versão em inglês, “Return
to Ithaca” (1952), e Margaret Atwood, autora de uma odisseia de Penélope, “The
Penelopiad” (2005), traduzida por Celso Nogueira para a Cia. das Letras como “A
Odisseia de Penélope” (2005).
O enforcamento de doze escravas que teriam se deitado com os
pretendentes que assediavam Penélope, central no texto de Atwood, ganha
proeminência também na peça de Jatahy, embora seja uma ocorrência secundária na
trama homérica. O episódio é narrado no Canto XXII, 417-473.
Aqui, reproduzo o breve trecho (461-473) a que se alude
repetidas vezes na peça da encenadora brasileira, na tradução de Christian
Werner (Cosac Naify, 2014):
“Vede, com morte limpa eu não tiraria a vida
delas, que insultos entornaram sobre minha cabeça
e nossa mãe, e ao lado dos pretendentes dormiam”.
Assim falou e o cabo de nau proa-negra,
após prender no grande pilar, jogou em volta da rotunda
e para cima bem esticou, para pé algum atingir o chão.
Como quando melros asa-comprida ou pombas
chocam-se com uma rede disposta num arbusto,
arremetendo para o abrigo, e hediondo leito lhes cabe –
assim elas, em fila, tinham as cabeças, e ao redor de cada uma,
nos pescoços, havia nós para provocar deplorável fim.
Convulsionaram os pés pouco tempo, de fato não muito.
(Renata Cazarini)