MEDEIA NEGRA (ON-LIVE)
Por ora, estou abordando peças antes encenadas nos palcos, comentadas no blog e reapresentadas agora na modalidade ON-LIVE, resumindo o teatro que se faz neste momento: ao vivo e on-line.
Desta vez é Medeia Negra, que já comentamos aqui.
MEDEIA NEGRA (ON-LIVE)
Dramaturgia: Márcia Limma, Márcio Marciano e Daniel Arcades
Direção musical e piano: Roberto Brito
Cenografia e adereços: Márcia Limma
Duração: 30 min.
Assistido em: 02.09.20
Site: youtube.com/sescsp (disponível temporariamente)
Divulgação: Listado como um dos espetáculos nacionais mais importantes de 2018 pela revista Bravo, “Medeia Negra” recria a tragédia grega de Eurípides para os contornos reais da voz, do corpo e do pensamento de uma mulher negra. No espetáculo, Márcia Limma traz a interculturalidade e referências afro-diaspóricas, por meio dos titãs e arquétipos das divindades como Nanã, Iansã, Exu e Omolu. A narrativa expõe as opressões sofridas pela mulher negra em diferentes lugares de fala e tempos históricos. Com elementos musicais, referências políticas e da intelectualidade negra, a peça, adaptada para o Teatro #EmCasaComSesc, provoca o público a refletir sobre o seu lugar no processo de desconstrução de mitos e práticas patriarcais e racistas.
COMENTÁRIO
Aproveitando-se da coincidência (será?!) de completarem-se exatamente dois anos desde a estreia da peça, ocorrida em 2 de setembro de 2018, na Bahia, Márcia Limma anunciou que a live era a desmontagem do espetáculo – o que, neste caso, talvez quisesse dizer apenas a derradeira apresentação, porque "desmontagem" implica uma conversa sobre a construção e a carreira da obra, e isso não aconteceu até porque o formato do Teatro #EmCasaComSesc não comporta essa interação com o público.
Se a peça realmente não voltar aos palcos, o registro audiovisual deixa de fora parte importante da encenação no teatro. Primeiro, estratégias de interação com o público, como a divisão da plateia entre homens e mulheres, bem como uma ação ostensiva para com eles e de identificação para com elas. Isso, definitivamente, não houve como resgatar na apresentação ON-LIVE. Depois, o figurino e o visagismo de Rino Carvalho, muito impactantes no palco, foram abandonados sem uma explicação divulgada. Uma perda muito significativa.
Márcia Limma com figurino e maquiagem em 2019
O elemento cênico do fogo é muito presente na encenação no teatro e pouco explorado ON-LIVE (apesar da inovação do fogão aceso), mas até dá para compreender, já que na sala escura do teatro luzes, sombras e aromas têm efeito superlativo, enquanto na tela...
Por outro lado, ainda que não seja tão contagiante quanto ao vivo, a presença do piano de Roberto Brito proporciona um dos melhores momentos de “Medeia Negra” ON-LIVE, quando Márcia Limma faz um número musical de quatro minutos (13:50-17:50), com microfone de pedestal, como se embriagada, ao lado do pianista.
Um ganho notável foi a produção ON-LIVE explorar dramaturgicamente a chuva que caía durante a transmissão. Márcia Limma faz uma cena externa, segurando um guarda-chuva vermelho sob a chuva e um pouco de vento, cantando sobre a dança da morte à qual a prole será submetida. Há algo aí de “Singing in the Rain” (1952).
O texto também não perde muito apesar de o espetáculo ter sido reduzido de 50 para 30 minutos. Na ficha técnica do ON-LIVE publicada pelo Sesc, Márcia Limma passa a assinar a dramaturgia, ao lado de Márcio Marciano e Daniel Arcades. A mudança mais notável é a supressão da breve narrativa do mito de Medeia: o encontro da princesa da Cólquida com os argonautas e o comandante Jasão, príncipe grego, a fuga, o casamento, a traição.
Uma fala que se repete muitas vezes no palco é preservada, apenas menos recorrente:
“Fantasmas do vício e da fome, entre tantas mulheres perdidas, sevícia, violência, estupro e morte. Sob o manto da cultura, o rastro da barbárie, maldita lógica econômica, tanto mais acumula quanto mais extermina”. (Medeia Negra)
Até onde sei, o texto da peça não está publicado, mas dou destaque a alguns trechos porque são reveladores de como o mito antigo é mobilizado como um grito contra o racismo e contra o patriarcado.
“Quando me acusaram de bárbara, não recusei a diferença. Saíram em minha defesa, mas desdenhei das belas intenções. O que importa é que meu corpo negro me afirma e me nega como um palimpsesto. Nele apago minhas dores para reescrever na pele um novo campo de prazeres. Nele apago o vestígio dos homens para reescrever na pele a memória ancestral”. (Medeia Negra)
“O ato odioso se transforma em rito de libertação. Num único ato entrego à morte o presente de meus dias. Num único ato destruo o passado para enterrar o futuro que me impuseram, mas que não aceito. Num único ato entrego à morte a prole que não mais reconheço, a parte que renego das minhas entranhas”. (Medeia Negra)
“Minha voz está cansada, mas com vocês em me faço coro, eu me sinto coro. (...) Vejo que o patriarcado sabe quem somos nós. Sabemos nós? Sabemos nós? Levanta, mulher, levanta. Levanta, mulher, levanta. Levanta, mulher, levanta. Com patriarcado é assim: se conseguir, mulher, converse. Se não der, mate!” (Medeia Negra)
(Renata Cazarini)
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