(A MONTANHA VAI A) SÍSIFO



Tem muita coisa acontecendo, sim, na área teatral. Tem faltado é tempo para eu escrever. O que não quer dizer que eu não venha acompanhando a cena. Venho.


Se em agosto não deu para publicar nada, agora vou investir no selo ON-LIVE. Escrito assim mesmo, resumindo o teatro que se faz neste momento: ao vivo e on-line.


Este aqui ainda não é o texto mais ambicioso que vai traçar em linhas gerais a estética teatral da pandemia. Por ora, vou abordar peças antes encenadas nos palcos, comentadas no blog e reapresentadas agora na modalidade ON-LIVE.


A primeira será Sísifo, que já comentamos aqui



(A MONTANHA VAI A) SÍSIFO


Tema: mito de Sísifo

Texto: Gregório Duvivier e Vinícius Calderoni

Direção: Vinícius Calderoni

Direção de produção: Andréa Alves

Elenco: Gregório Duvivier

Duração: 35 minutos

Assistido em: 14.08.20

Site: youtube.com/sescsp (indisponível)


Divulgação: Um remix e uma atualização do espetáculo escrito por Gregório Duvivier e Vinícius Calderoni, interpretado pelo primeiro e dirigido pelo segundo, uma ressignificação contemporânea do mito para os tempos turbulentos em que vivemos, sem perder o humor e a ternura.


Divulgação 2: Personagens míticos também fazem home office? Sim. Pelo menos no caso de Sísifo, que foi condenado pela eternidade a carregar uma pedra até o alto da montanha, para depois vê-la cair. É o que vamos assistir nesta versão para o Teatro #EmCasaComSesc da peça “(A Montanha Vai a) Sísifo”, de Gregório Duvivier, que interpreta o personagem da mitologia, e Vinícius Calderoni, que dirige a montagem.


Entrevista de Gregório Duvivier à revista Veja sobre essa apresentação.


COMENTÁRIO

Tudo fez muito mais sentido desta vez. Foi a ausência da rampa, substituída por uma rocha, que revelou a eficácia da dramaturgia de “Sísifo”, a peça encenada no palco que eu tinha visto um ano antes e que vinha cumprindo a chamada “carreira de sucesso” nos teatros até a pandemia de Covid-19, o necessário isolamento social e o consequente esvaziamento das salas.


Acontece que a versão remix, rebatizada “(A montanha vai a) Sísifo”, foi encenada só uma vez (sem direito a gravação no site do Sesc SP para uma segunda espiada) na casa da mãe do ator-comediante-ativista-autor-etc Gregório Duvivier, a cantora Olivia Byington, onde há uma rocha, utilizada como cenário da montagem ON-LIVE. Veja as fotos.





Sem a rampa, a peça é outra. Menos interessante. A repetição insana da subida da rampa é a jogada de mestre que faz todos os breves textos que compõem a peça, publicada há pouco pela Cobogó, significarem plenamente o mito de Sísifo, aquele condenado a rolar uma pedra morro acima e vê-la descer sempre, sem nunca dar por completada a tarefa.


É no sentido mais puro do teatro, como corpo(s) que realiza(m) a palavra, que a peça se agigantou aos meus olhos. A combinação do papel de telespectadora do YouTube e de leitora da edição impressa do texto dramatúrgico me fez resgatar na memória as impressões deixadas pela encenação de Duvivier há um ano, quando era possível estar suando com ele ao final dos 75 minutos de espetáculo.


Por isso, dá para entender bem que ele mesmo, protagonista dos 35 minutos ON-LIVE, tenha dito que uma coisa não era a outra: teve iluminação, teve produção, teve ensaio, mas faltava o público. Para mim, faltava a rampa.


Porém, não é pouco surpreendente quando Duvivier sobe na rocha, seu cenário substituto, que parecia até então apenas uma imagem chapada na tela do computador, e apresenta o “Salto 31 – O amor é limbo”, que trata desse sentimento como uma queda no abismo.



Se esse texto funciona bem, outros tiveram que ser cortados porque estavam muito vinculados ao movimento de subida e salto da rampa. Mas, sem dúvida, ainda fazem rir (com rampa ou sem rampa) o “Salto 8 – Despedida patrocinada” e o “Salto 16 – Faço sentidos”: o primeiro, um suicida que busca sua fama nas redes sociais (“Saio da vida para entrar nos stories”), e Ornela, a empreendedora que deixou de fazer brigadeiros artesanais para fazer sentidos de vida.


Também não foram deixados de lado os textos mais ácidos, como o “Salto 51 – Previsão do Tempo” e o “Salto 53 – Apocalipse Delivery”. 


“O sol da razão aparece ocasionalmente, mas quase sempre o tempo estará encoberto pelas nuvens da brutalidade”.

“Eu acho que houve um engano: eu pedi uma renovação, vocês mandaram o apocalipse”.





No livro, interessa saber como os dois autores chegaram a Sísifo como um ícone do mundo interconectado:


“Devemos admitir que nosso Sísifo nada tem a ver com o mito homônimo. Ou ainda: tem tudo a ver com o mito, mas não se pretende, em minuto algum, uma transposição do enredo ou mesmo uma recriação livre da trajetória do personagem. A epifania que nos levou até Sísifo foi bem mais singela: depois de decidirmos criar uma peça juntos e de muito deliberarmos acerca do que queríamos falar, chegamos à conclusão que seria interessante pensar em como transpor a linguagem dos memes e dos gifs para a cena. Um instante depois, a epifania dentro da epifania: Sísifo é o primeiro gif animado da humanidade” (p.8-9). 


Antes do ponto final, não tem como escapar de notar o comportamento, digamos, errático do atual telespectador de teatro. As boas práticas regulam que não se entra na sala após ter-se iniciado o espetáculo, apenas – talvez – na ocasião de um intervalo. Pois bem, na transmissão da peça de Duvivier e Calderoni pelo YouTube, pude documentar como o público continuou a aumentar não importava com quanto atraso se chegasse ao espetáculo: às 21h38, o print da tela mostra 5289 pessoas, às 21h46 são 5864, às 21h54 somam 6003, às 21h57, quando a apresentação já tinha transcorrido por 25 minutos, eram 6054. A peça teve só mais 10 minutos.


É inevitável apontar também indícios das relações de força no mundo das artes mesmo sob as restrições gigantescas provocadas pela pandemia. O Sesc SP tem colocado no ar atores e atrizes que costumam ocupar seus palcos. As transmissões ao vivo, sempre inferiores a uma hora, ficam gravadas e disponibilizadas no canal. Mas não a de Duvivier.

(Renata Cazarini)



Comentários