MEDEA MINA JEJE (ON-LIVE)


Por ora, estou abordando peças antes encenadas nos palcos, comentadas no blog e reapresentadas agora na modalidade ON-LIVE, resumindo o teatro que se faz neste momento: ao vivo e on-line.


Agora é Medea Mina Jeje, que já comentamos aqui.


MEDEA MINA JEJE (ON-LIVE)

Tema: Medeia, de Eurípides.  

Concepção, atuação e produção geral: Kenan Bernardes

Dramaturgia: Rudinei Borges dos Santos

Direção: Juliana Monteiro

Assistente de direção e decupagem: Renata Reis

Designer de som: João Paulo Nascimento

Duração: 25 min.

Assistido em: 03.08.20

Site: youtube.com/sescsp (disponível temporariamente)


Divulgação: Ao saber que seu filho Age seria perseguido, mutilado e novamente aprisionado à boca de uma mina de ouro, Medea, uma mulher negra e escravizada, decide-se por sacrificá-lo, numa tentativa de libertá-lo da própria sina. “Medea Mina Jeje” parte da tragédia grega “Medeia”, de Eurípides, para criar o poema-pranto de uma mulher negra, escravizada na Vila Rica de Nossa Senhora de Pilar de Ouro Preto, nas Minas Gerais do século XVIII. O espetáculo, adaptado para o Teatro #EmCasaComSesc, traça uma ponte com os dados históricos e culturais de negros escravizados da época e local em que se passa a peça. Sobretudo no que diz respeito à relação morte-vida e sacrifício, uma vez que do ponto de vista de muitas dessas culturas africanas esta é uma relação circular: a vida de um é compreendida como pertencente ou entrelaçada à vida da comunidade e aos desígnios ancestrais.


COMENTÁRIO

Não há dúvida de que “Medea Mina Jeje” ON-LIVE continua sendo um poema cênico apesar das evidentes limitações no cenário e no figurino.  O texto poético de Rudnei Borges dos Santos e a sua corporificação por Kenan Bernardes estão ali, presentes. O espetáculo já era breve no palco, com apenas 40 minutos, e ficou ainda mais breve na tela, com reduzidos 25 minutos. O que saiu? Infelizmente, algumas belas coreografias que exploravam por completo o espaço cênico, uma arena demarcada por folhas secas. A imagem abaixo é um print da versão audiovisual do espetáculo completo, sem público, que pode ser assistida no canal da Bruta Flor Filmes aqui.




Eu já havia apontado no comentário de 2018 os silêncios intercorrentes na apresentação: fundamentais, pois valorizam o design de som que explora bem o ranger de madeira e as ondas quebrando no mar, uma oposição fundamental no texto poético entre a clausura do porão em que ficavam presos os escravos e a perspectiva das terras transatlânticas (sim, sabemos que MG não tem litoral) após a forçada diáspora negra. Se alguns momentos sem fala persistem no ON-LIVE, as coreografias foram cortadas ainda que Kenan Bernardes procure explorar sua casa como palco: há um espaço sufocante, recoberto de terra, que procura simular a parede de taipa em que Medeia esconde as ervas curativas e que também evoca os corredores estreitos e escuros das minas de ouro.


Nessa “experiência que se baseia na peça”, como diz Kenan Bernardes ao fazer os agradecimentos finais, é introduzido o elemento água, na qual Medeia se banha com as ervas e que é utilizada para simular a preparação da taipa. Talvez seja esse novo dispositivo dramatúrgico que tenha levado a produção a dispensar o figurino de Carol Brada, um dos pontos altos da montagem no palco. No ON-LIVE, Kenan Bernardes está sem camisa e derrama sobre si bastante água enquanto na peça presencial é só pó e mais pó – um cenário extraordinariamente árido, incluindo a terra que ele faz cair das vestes.



Característico deste solo é o ator dar a voz a mais de um personagem, tal como faz o mensageiro na tragédia antiga quando reproduz a fala de alguém citado no relato. Assim, Kenan Bernardes, com a inflexão da voz, faz-se narrador, faz-se coro, faz-se Age, filho de Medeia, faz-se Jasão, capitão do mato, faz-se Medeia, é claro. Note na imagem abaixo as partes do figurino distribuídas no palco.




Sem o figurino, tudo tem que se sustentar mais na expressão facial e na inflexão da voz, mas nisso ajuda muito a estratégia do audiovisual visto que, então, a câmera se aproxima ou se aproxima dela o ator, expondo em primeiríssimo plano o olhar de Medeia ou a gargalhada do Jasão capitão do mato.



Medea,

Onde foi teu menino?

Onde foi tua cria?

Bichinho correu no mato?

Vão estraçalhar menino,

Medea.

Arrastar menino no pedregulho

Do alto da colina abaixo

Até a boca da mina,

Medea,

Teu menino é bicho.

Né não, Jasão, capitão do mato.

Meu menino é gente.

Miúdo grão de terra,

Jasão, capitão do mato.

Miúdo como menino miúdo.

Medea,

Teu menino vai morrer.

Vai não, Jasão, capitão do mato.

Medea,

Cães e homens

Mandei

Do teu menino

Atrás.

Mandei corda e ferro.

Teu menino vem dependurado.

Sem testículos.

Sem olhos.

Meu menino vai avistar,

Jasão, capitão do mato.

Meu menino vai avistar mar revolto.

Nem um tanto,

Medea.

Teu menino

Vai avistar cegueira da mina.

Fardo pesado da mina.

Ar rarefeito da mina.

Teu menino vai cavar ouro,

Medea.

Até morrer

Teu menino vai cavar ouro

Até ouro

encher dedos de Jasão, capitão do mato.

Dentes de Jasão até.


Nesta “Medea Mina Jeje” há o apagamento total dos traços da Medeia que vinga a traição de Jasão. Aqui não há ciúmes porque não há romance. É a aridez da escravidão, da distância da terra de origem, da esperança frustrada da fuga para o quilombo. O que não quer dizer que não persista a estratégia de vingança que caracteriza a Medeia mítica. Só que essa vingança contra Jasão capitão do mato, expressa em palavras, não se realiza na peça. Somente a redenção do filho Age.



No final, uma mudança que explora os recursos audiovisuais. No momento da invocação aos Voduns, entidades divinizadas do panteão jeje, a produção recorre a um dispositivo que vinha sendo usado com pouco critério nos palcos pelo país, mas não nesta peça especificamente: a projeção de imagens. Aqui, o impacto do inesperado tem eficácia.

(Renata Cazarini)


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