MEDEIA NEGRA, com Grupo VilaVox




Mito: Medeia, de Eurípides
Concepção e atuação: Márcia Limma
Dramaturgia: Márcio Marciano e Daniel Arcades
Direção: Tânia Farias
Direção musical e piano: Roberto Brito
Local: Sesc Pompeia – São Paulo
Temporada: 28.11 a 15.12.19
Duração: 50 min.
Assistido em: 30.11.19


SINOPSE
Medeia é vista como a fundação de uma exclusão fundamental: a invisibilização da voz feminina. Sob o nome de "bárbaro", se justifica o exílio e a divisão do mundo entre civilização e barbárie. O espetáculo revela para o público outras possíveis leituras do mito grego. É uma montagem que não desenvolve propriamente uma história ou um drama, no sentido aristotélico do termo. A história imposta pelo patriarcado é uma metáfora das mortes que as mulheres negras são obrigadas a carregar. Ela serve, aqui, como um mito de referência. Nos tempos passado, presente e futuro, a personagem desconstrói o mito para convocar as mulheres à retomada do poder. A ancestralidade e a evocação aos cânticos negros de libertação disparam um embate entre público e personagem sobre as reflexões levantadas. (Divulgação)


COMENTÁRIO


“Fantasmas do vício e da fome, entre tantas mulheres perdidas, sevícia, violência, estupro e morte. Sob o manto da cultura, o rastro da maldita lógica econômica, barbárie, tanto mais acumula, quanto mais extermina”. (Medeia Negra)


Esta montagem de “Medeia” é um ato de feminismo negro, conforme expressa abertamente Márcia Limma não apenas no solo em que atua como também num texto em que apresenta seu projeto acadêmico, desenvolvido na Universidade Federal da Bahia (UFBA) sob orientação de Denise Carrascosa. Veja o currículo Lattes da atriz.  


“Medeia é um desafio; um grito; um descamar de peles e vozes de diversas mulheres de ontem e de hoje que necessitam sair do ciclo de aniquilação do feminino”, escreve a atriz e mestranda, que relata ter se deparado com textos que apontaram caminhos para a construção de “Medeia Negra”, como a peça “Além do Rio”, de Agostinho Olavo, “Medea en promenade”, de Clara de Góes, “Mata teu pai”, de Grace Passô. Quanto a esta última referência, a alusão é evidente numa fala muito significativa no final do solo: “Com o patriarcado, é assim: se conseguir, mulher, converse. Se não der, MATE!”.


Membro fundador do grupo de teatro baiano VilaVox, Márcia conta que o processo criativo de “Medeia Negra” remonta à peça “O Castelo da Torre”, de 2015, em que sua personagem era uma mulher negra agrilhoada nos porões do Castelo Garcia D’Ávila no período colonial brasileiro: “Ao final da peça, ela reaparece nas ruas do Pelourinho, dessa vez livre, com uma saia gigante que se arrastava pelas pedras-moleque, cantando um lamento africano que dizia: O que fiz meu Deus? Tinha dois filhos. Perdi um, mas não vejo o segundo também...” O trabalho de dramaturgia coletiva foi conduzido por Márcio Marciano, que, no texto “Biografia” (2015), formula a seguinte fala, agora repetida no espetáculo sobre Medeia: “Nasci negra, morro negra todos os dias”.


A peça sobre Medeia é decorrente também da experiência de Márcia no projeto de extensão universitária de oficinas de literatura no conjunto penal feminino do Complexo Penitenciário Lemos Brito, em Salvador (BA), intitulado “Corpos indóceis, Mentes livres”, coordenado por Carrascosa. “Qual outro arquétipo poderia reconstruir vozes de mulheres que lutam por justiça, reconhecimento e por espaços de igualdade?”, diz Márcia.


“Medeia Negra”, que estreou na Bahia em 2018, esteve em setembro do mesmo ano também no 3º Festival Internacional de Teatro de Mulheres, em Frankfurt, na Alemanha. Agora faz temporada no Espaço Cênico do Sesc Pompeia, em São Paulo, onde acontecerá no sábado, 14 de dezembro, um debate sobre “maternidade e negritudes” com a historiadora Suzane Jardim, às 16 horas, entrada gratuita.


O espetáculo não segue a narrativa do mito de Medeia. Faz citações à personagem mítica, princesa bárbara da Cólquida, feiticeira e assassina dos filhos, conforme a versão canônica estabelecida na peça de Eurípides, autor grego do século V a.C. Contudo, a Medeia encenada por Márcia se propõe como força agregadora da resistência contra o patriarcado, catalisadora do feminismo negro: “Num único ato, destruo o passado para poder fazer o futuro que me representa”. Embora uma atuação solo, a atriz concebe a montagem como interação com o público que se assuma identificado com o gênero feminino e diz: “Minha voz está cansada, mas com vocês eu me faço coro, eu me sinto coro”.


A plateia é dividida, logo à entrada, entre masculino e feminino. Pelo corredor central, a atriz exibe um trabalho de expressão corporal que sobrepuja o texto, de caráter explicitamente fragmentário, intercalado por canções acompanhadas ao vivo pelo piano de Roberto Brito. O figurino e o visagismo, de Rino Carvalho, merecem atenção.


A experiência com esta “Medeia Negra” complementa o repertório recente no Brasil de ressignificação do mito de Medeia como protagonista da resistência, vide “Medea Mina Jeje e “Mata teu pai”, ambos espetáculos documentados e comentados aqui no blog. Como afirma Márcia no seu artigo, “o corpo ancestral de Medeia, que o machismo tratou de banir e desconstruir, retorna com toda a força, em movimento, provocando a polifonia da voz feminina”.
(Renata Cazarini)


Vale ler a crítica sobre “Medeia Negra” e o projeto de Márcia Limma na Revista Digital Ponto Art, Vol. 4, nº 1, janeiro/ 2019.