ANFITRIONE (ANFITRIÃO), DE SERGIO PIERATTINI


Mito: Nascimento de Hércules
Texto de partida: Amphitruo, de Plauto  
Adaptação: Sergio Pierattini
Produção: La Pirandelliana (em conjunto com Fondazione Teatro della Toscana)
Direção: Filippo Dini
Cenografia: Laura Benzi
Figurino: Alessandro Lai
Iluminação: Pasquale Mari
Música: Arturo Annecchino
Local: Teatro della Pergora (Florença) 
Temporada: 26.11 a 01.12.19
Duração: 2h (com intervalo)
Assistido em: 26.11.19

COLABORAÇÃO DE BEETHOVEN ALVAREZ*

SINOPSE

Um deputado desqualificado que não passava de um zé-ninguém, de repente, acaba de ganhar, sem ninguém saber como, as eleições para chefe do governo. Ele é ignorante, despreparado e, no tocante à retórica, um quase analfabeto. Está mais preocupado com suas redes sociais do que com projetos. É um aproveitador. Como plataforma política, para agradar o povo e explicar a motivação de seus planos, vai propor colocar a religião acima de tudo. Não é o que você está pensando. Estou falando do novo Anfitrião (Anfitrione), personagem da peça homônima de Sergio Pierattini, que estreou nos teatros italianos neste ano. O texto é uma adaptação inspirada no famoso Anfitrião, de Plauto. 

Escrito por Sergio Pierattini e dirigido por Filippo Dini, Anfitrione coloca em cena, numa produção da companhia de teatro La Pirandelliana, os famosos atores italianos Gigio Alberti (Anfitrião), Barbara Bobulova (Alcmena), Antonio Catania (Júpiter), Giovanni Esposito (Sósia), Valerio Santoro (Mercúrio) e Valeria Angelozzi (Brômia).

O enredo começa quando Anfitrião, um deputado pouco representativo, retorna de Roma para sua cidade, após sua vitória eleitoral inesperada. Sósia, motorista particular e faz-tudo do “honorável” Anfitrião nesta adaptação de 2019, chega à frente para avisar do retorno do recém-eleito Primeiro Ministro a sua esposa, Alcmena, próxima Primeira Dama, que é uma professora do ensino médio em uma pequena cidade. Na casa do político, ainda encontramos Brômia, esposa de Sósia e empregada solícita da família. 

O conhecido quiproquó se instaura quando o sumo Júpiter, auxiliado por Mercúrio, aparece para desfrutar de uma noite de amor com Alcmena, assumindo a identidade de Anfitrião e enganando sua bela esposa. Os deuses na peça de Pierattini continuam sendo deuses, criaturas de poderes divinos e forma humana. 

Sósia e Anfitrião serão confrontados com seus duplos. Alcmena, mais uma vez, enganada. Na trama, Brômia também será engabelada por Mercúrio. Em cena, “verdade e engano, entendidos e mal-entendidos, gera[m] situações cômicas, estranhas e surpreendentes”, escreveu o autor. Para o diretor Filippo Dini, esse novo Anfitrião é “uma reinterpretação do clássico de Plauto que se torna um reflexo profundo, quase arquetípico, de nossa essência mortal, de nosso relacionamento conosco mesmos, de nossos medos. Em última análise, de nosso duplo.” 

A premiére desse Anfitrione de 2019 ocorreu em 24 de julho no anfiteatro romano de Urbisaglia, construído em 81 d.C, localizado na província de Macerata. Em 26 de julho, a companhia já estava no Catona Teatro, na Calábria. E, logo em 28 de julho, se apresentou, durante o Plautus Festival deste ano, na Arena Plautina, em Sársina, cidade na qual Plauto teria nascido. Antes de partirem para propriamente uma temporada de abertura no Teatro Manzoni, em Milão, onde ficaram em cartaz de 31 de outubro a 17 de novembro, passaram ainda por Pontedera, na província de Pisa, para duas apresentações em 29 e 30 de outubro. De Milão, percorreram cinco cidades ainda, antes de chegarem a Florença, ao Teatro della Pergola, onde se apresentaram entre 26 de novembro e 1º de dezembro. Depois de Carrara (4 de dezembro), a próxima parada da trupe foi em Veneza, no Teatro Mario del Monaco, com três apresentações entre 13 e 15 de dezembro, encerrando 2019. E a agenda para 2020 segue cheia em janeiro.

NOTA DE SERGIO PIERATTINI (tradução)

O Anfitrião de 2019 é um político aproveitador, ou melhor, um incompetente e populista que, com seu recém-criado partido político, acabou de derrotar seus oponentes numa votação surpreendente e inesperada. Sósia, que Plauto e Molière quiseram que fosse seu escravo, se tornou seu motorista particular, ao passo que a bela Alcmena, esposa do vencedor da eleição e próxima First Lady, se tornou professora do ensino médio em uma pequena cidade. Mas como, nessa reescritura contemporânea de um dos clássicos mais populares da comédia, se transformaram Júpiter e Mercúrio, os deuses que deram origem ao mito do nascimento de Hércules, graças ao amor de Júpiter pela esposa de Anfitrião? A resposta está na articulação perfeita de uma obra dramatúrgica que, aprimorando-se, atravessou os séculos, de Plauto a Giraudoux, com seu Amphitryon 38, passando por Molière, Kleist e muitos outros. Os deuses, independentemente da descrença e ceticismo que os rodeiam desde o fim do mundo clássico, continuam a agir e incomodar com sua intervenção, ontem e hoje, tanto os humildes quanto os poderosos. Júpiter, para possuir Alcmena, enganando seu marido, faz vencer as eleições o improvável Anfitrião, que, quando chega em casa como o novo deputado eleito para o cargo de Primeiro Ministro, se encontra em apuros com uma intriga que sua inteligência é incapaz de entender. A própria Alcmena é a protagonista de um engano que gradualmente é revelado através do jogo do qual ela mesma é uma vítima.

Os protagonistas duplicam-se: há um Anfitrião grosseiro, vulgar e arrogante e um Anfitrião, interpretado por Júpiter, gentil e modelo de homem perfeito (ou quase). Ecoando esses dois Anfitriões, há uma Alcmena irritadiça e vítima da negligência de seu marido em face de outra Alcmena, doce e sensual, que vemos às voltas com Júpiter quando este toma a forma de Anfitrião. A metamorfose também envolve personagens que pertencem à escala social mais baixa. O humilde Sósia tem seu alter-ego em um Mercúrio diabólico e insolente, e sua esposa, Brômia, se vê às voltas com seus dois “maridos”, Sósia e Mercúrio, e sua preferência por este último fica clara.

A alternância entre verdade e engano, entendidos e mal-entendidos, gera situações cômicas, estranhas e surpreendentes que espelham os acontecimentos cada vez mais ridículos e desorientadores do nosso presente.

COMENTÁRIO DO ENREDO E DA ENCENAÇÃO

Sósia está impagável! “Che sta succedendo?”, se pergunta o tempo todo o desorientado motorista “napolitano” desse “Anfitrião” de 2019, um deputado tosco e simplório de uma cidade italiana qualquer que não sabe nem usar o subjuntivo e tem mau hálito por causa do refluxo. Mesmo com sintaxe e vocabulário limitados (ele confunde Mercúrio com termômetro, e lubrificação com elucubração), esse incompetente parlamentar (que acha que Júlio César venceu Aníbal) acaba de ganhar a eleição para Presidente do Conselho e, milagrosamente, se torna o Primeiro Ministro da Itália. Essa é a trama inicial, que ficamos sabendo logo na primeira cena, quando Sósia entra pelo meio da plateia, no escuro, portando uma lanterna, maldizendo a própria sorte, numa fala agitadíssima, carregando as malas do patrão, que está para chegar. Mal sabem eles que o “milagre” da eleição de Anfitrião foi engendrado pelo próprio Júpiter, exatamente para fazer o deputado retornar para casa para comemorar sua vitória com sua esposa. 

No centro do palco, vemos a fachada de uma bela casa de dois andares, com uma porta no térreo, que dá entrada para a casa, e, no segundo piso, um limiar guarnecido de cortinas que sai para um pequeno balcão, com balaustrada simples em estilo grego. À esquerda do palco, uma espreguiçadeira à frente da fachada de uma piscina, que é contígua à própria casa, sugerindo que a cena se passa no quintal. À direita, uma mesa e quatro cadeiras, como elementos cênicos próprios do interior da casa, mas que, seguindo as convenções dramáticas antigas, aparecem no palco. O espectador atento espera que ali se celebre a festa final que encerra a trama com um happy ending. Será? Porém, mais que isso: durante a peça, vamos nos dando conta de que até o cenário é um reflexo psicológico de nós mesmos, do nosso “eu”: conseguimos apenas ver o lado externo do edifício e temos poucas dicas do que se passa lá dentro. 

Inexplicavelmente a chave de Sósia não abre a porta. O motorista tenta se comunicar com Brômia, sua esposa e camareira de Alcmena, mas não consegue. Trancado do lado de fora, lamenta sua sorte diante da porta, simulando o convencional motivo do amator exclusus (na chamada paraclausithyron), tão comum em Plauto. Então, Mercúrio sai de dentro da casa com um revólver em punho ameaçando Sósia que insistia em abrir a porta. Aí se desenrola uma burlesca cena em que Mercúrio convence Sósia, e Brômia, de que ele, Mercúrio, é o verdadeiro Sósia, e que Sósia, na verdade, não é o Sósia. (Ao espectador menos avisado vale lembrar que nossa palavra “sósia”, o duplo de alguém, vem por derivação exatamente do nome próprio deste personagem.) 

Não poderiam faltar referências políticas atuais, e o tema da imigração e da discriminação contra o imigrante aparece algumas vezes. Nessa cena, é hilariante a ridicularização do preconceito acéfalo (não sei se todos lá riram como eu). Acusado de ser um criminoso, Sósia (que agora já não é mais Sósia e, a esta altura, está com o revólver na mão por conta de uma armação de Mercúrio) é considerado um imigrante. Brômia liga para a polícia e é informada de que um nigeriano está às soltas. “Mas eu sou branco”, retruca. Mais à frente, aventa-se a ideia de que ele poderia ser confundido com um árabe. Brômia dá essa informação à polícia pelo telefone e solta: “Dizem que os nigerianos brancos árabes são os mais perigosos!”
  
A cena é longa. Sósia fala sempre muito agitado, corre pra lá e pra cá, usa muitas vezes formas dialetais e, algumas vezes, não é entendido nem pelos personagens (imaginem por mim!). Sua natureza, um pouco caricata, é humilde e parece um pouco rude, mas do riso do início vamos passando para a compaixão no final, quando, já quase estirado no chão, ele pergunta ao Mercúrio/Sósia quem ele é então. “Ninguém”, diz o novo Sósia, que, além da retórica e da violência, usa poderes arcanos para encantar as pessoas. Isso ajudar a explicar também a não necessidade de máscaras ou outros recursos cênicos que deixassem os dois personagens/atores realmente idênticos; sua efetiva semelhança se verifica apenas na roupa, que é igual (embora Mercúrio apareça com asas nos tênis, e Júpiter use um cordão com um pingente de trovão). “Ser ninguém tem seus benefícios”, diz Mercúrio: neste caso, suas contas, multas e toda sorte de cobrança chegarão para Ninguém, afinal. Ele ainda lembra que, sendo ninguém, o não-Sósia poderia criar uma nova identidade para si. Com clara referência ao Ninguém de Ulisses, Pierattini busca evocar também o discurso psicanalítico freud-lacaniano, sugerindo que, ao encontrarmos nosso duplo, o que nos sustenta como sujeitos pode ruir. Essa sugestão vai se consolidar finalmente quando Mercúrio lhe rouba o afeto de Brômia.

A cena seguinte é de Júpiter/Anfitrião e Alcmena, que saem para o balcão pelo pórtico, após terem se conhecido no sentido bíblico. Ela reconta as qualidades do amante e fala da surpresa de rever o marido tão atento e garboso. Agora, o texto vai mais fundo na proposta de que uma melhor parte de nós pode vir à tona. Esse deus que engana Alcmena é, ao mesmo tempo, o duplo superior e oculto de Anfitrião, que é atencioso, elegante e sabe falar muito bem (Alcmena todo o tempo admira o vocabulário eloquente do “marido”); além de um deus, aquele ali talvez pudesse ser um outro “eu” de Anfitrião. (Mas o que o texto não resolve é que esse “duplo melhor” foi o mesmo que, pelo menos retoricamente, fez sexo com uma mulher sem seu consentimento.) 

O tema da nox longa é mencionado. Há uma enorme lua projetada pela iluminação de Pasquale Mari. E Júpiter explica seus motivos, num discurso disfarçado. Ele poderia ter citado Vinícius de Moraes: “Que não seja imortal, (...) / Mas que seja infinito enquanto dure.” Esse é o drama do onipotente: ele não consegue sentir o amor mortal, que teme a morte e o fim, e, por isso, é tão infinito enquanto dura, tão intenso e humano. (Estou evitando fazer comparações com outras adaptações para não estender mais o texto, mas vale lembrar que esse mesmo “drama divino” é trabalhado por Godard na cinematográfica adaptação Hélas pour moi, de 1993).

O dia vai raiando, mas quando o desejo de Júpiter se acende de novo, a lua retorna; contudo, ele precisa partir, então o sol nasce finalmente. Fica clara a metáfora de que claro e escuro, luz e sombras, dependem de nossas vontades, ou como Ilaria Guidantoni escreveu, “non abitano fuori ma dentro di noi”, “não habitam fora, mas dentro de nós”.

Na sequência, um pequeno diálogo entre Júpiter e Mercúrio marca a partida dos seres divinos. O comportamento do máximo deus nessa hora é patético e risível, quando se despede lamentando-se diante da porta, repetindo diversas vezes: “Alcmena! Alcmena!” Esse deus-humano deseja fulminar com seus trovões o verdadeiro Anfitrião, mas aqui com um requinte de crueldade ridículo, fazendo uma onomatopeia do som de choque elétrico, “shr-shr”, apoucando-se, dizendo que quer fazer isso enquanto Anfitrião toma banho.

Após o raiar do sol e da noite agradável, Alcmena vai para a piscina, aproveitar o dia. Nisso entra em cena finalmente Anfitrião, o “verdadeiro”, e começa a terceira grande cena (sem contar as pequenas cenas de entrada e saída) e última do primeiro ato. Esse é o momento em que conhecemos o deputado, que está mais interessado em tirar selfies para agradar seus seguidores do que dar ouvido às indagações da mulher, que está seriamente confusa e irritada. Afinal, se o marido lhe está dizendo que só retornou agora, com quem terá se deitado na noite anterior? Num misto de engano, descaso, descrença e double entendre, o retrato dos personagens vai sendo pintado, e, só bem no final, que Alcmena se dá conta que dormiu com outro. Mas quem?

Quando poderia ter havido um monólogo dando voz a essa mulher enganada, o ato termina com uma Alcmena em situação de choque e sem fala.

O segundo ato, embora tenha a mesma duração de mais ou menos uma hora, é bem mais ágil, com uma divisão de cenas menos marcada, e com uma Alcmena que ganha um pouco mais de espaço e vai assumir também seu duplo. 

Brômia tenta explicar para a patroa que não existe isso de “um outro” e que, na verdade, Anfitrião estava tentando confundi-la. A simplificação da criada acaba por confundir ainda mais a já confusa Alcmena. Sem entender muita coisa, mas querendo acreditar no marido (há um marcado desejo (?) de manutenção conjugal no seu comportamento), é enganada mais uma vez: Júpiter aparece de novo, com um buquê de flores na mão e palavras sedutoras. Ambiguamente, acreditando na “mudança” do marido (ela adora quando ele diz “órgãos fonadores”) e talvez um pouco sem se importar muito, Alcmena assume uma postura igualmente sedutora e aceita o jogo. Jogo no qual Júpiter vai bem longe, prometendo como forma de sedução dar-lhe um filho (!), a ela que sempre teria desejado. Convencida (ou não) pela promessa do amante, entram para mais um conúbio amoroso.

Voltando aos “órgãos fonadores”. Para se desculpar de seu comportamento pregresso, esse Anfitrião-deus-“meu lado melhor” explica que muitas vezes seu outro pior pensa coisas boas, mas que tem dificuldade de expressar, de dizer (ele usa a metáfora de um curto-circuito na cabeça). Esta é uma chave importante de interpretação de toda a peça. Uma pergunta perpassa boa parte das discussões do texto: o quanto a linguagem nos define? (Mas temos que ter o cuidado para não incorrer no antigo erro de associar competência linguística a caráter.) O Anfitrião grosseiro não sabe usar o subjuntivo... O que Pierattini parece querer sugerir é que, em todos nós, há uma natureza latente, oculta e poderosa que é nossa melhor parte, mas que não é necessariamente expressa, visível.

Voltando ao palco. Enquanto Júpiter e Alcmena estão no quarto, Mercúrio sai para tomar conta da situação. Aí se desenrola o “improvisado” engano de Brômia, que, sem saber que seu Sósia é o impetuoso e desaforado Mercúrio, trata-o de forma carinhosa, achando que está diante do marido que andava há muito tempo por aí acompanhando o patrão. Tocado pela manifestação do afeto humano, Mercúrio decide experimentar os mesmos favores mortais atrás dos quais o pai viera, mas não sem antes ter que expulsar um Anfitrião qualquer que queria entrar em casa.

Aqui começa a cena mais engraçada da peça (eu ri a ponto duma velhinha do meu lado me olhar com cara feia). Anfitrião, em vez de ir embora, se esconde na frente do palco, no nível da plateia e bisbilhota o que se passa em cena, quando vê Mercúrio/Sósia entrando com Brômia para o quarto. Nisso, Sósia entra, pela esquerda, vindo do bar, bêbado feito um gambá e com a gravata amarrada na testa, agora, literalmente sem saber quem é. Anfitrião e Sósia se encontram e protagonizam uma divertida cena com muito movimento e repleta de humor verbal, repetições e sugestões sexuais de duplo sentido. Nessa cena, os dois duplos “piores” se encontram e se espelham: são a imagem um do outro. São ambos ali cornos de si mesmos. 

Quando ouvem um barulho vindo da casa, se escondem. Veem Mercúrio saindo de casa com Brômia em lua-de-mel. Anfitrião se regozija do infortúnio alheio: “Ha-ha, estamos no mesmo barco!”, diz. Nisso, Alcmena sai com o vestido ainda aberto. “Aaah! o barco afundou!”, grita Sósia, arrancando gargalhadas do público.

Aí começa o final. Anfitrião e Sósia saem do esconderijo e acusam as mulheres em cena, que ficam perturbadas, sem entender nada, mas com a clara percepção de que estão sendo enganadas. Afinal, se os dois estavam ali o tempo todo, quem eram os dois com quem tinham se deitado? Repetindo o famoso deus ex machina plautino, Júpiter e Mercúrio aparecem na sacada e explicam, com sua soberba e desfaçatez características, o que se passara. Para recompensar os casais, Júpiter concede a Sósia um posto de assessor parlamentar, e a Alcmena e Anfitrião, filhos, gêmeos, um de cada pai, e a promessa de que Anfitrião será um bom marido dali pra frente.

Até aí se emula a cena final do “Anfitrião” de Plauto (que ninguém sabe qual era, de fato, já que o texto está corrompido nessa parte), mas, depois que os deuses vão embora, o marido traído não pede aplausos pro sumo Júpiter, e sim, veremos os quatro personagens mortais, sentados cada qual numa parte do palco, desolados, cabisbaixos e pesarosos.

As mulheres elucubram que seus duplos maridos não eram tão semelhantes assim, que, de certa forma, elas sabiam que podiam estar sendo enganadas. De vítimas, passam a cúmplices (o texto sugere) devido a uma inata característica do ser humano: o desejo de se iludir para proteger a consciência. Essa é mais umas das proposições psicologizantes do texto.

Aproveitando o gancho, Anfitrião precisa explicar o que aconteceu, não pega bem um Primeiro Ministro cornuto (ele diz), então, tem um insight, e, na mesma chave de Guilherme Figueiredo, ele entende que é melhor dizer mesmo que foram os deuses, que “um deus dormiu lá em casa”, sim, a culpa foi dos deuses... as luzes vão se apagando, ele sobe na mesa, pega um microfone e começa um discurso político inflamado ao som de uma empolgante música eletrônica. Não!, a culpa para os problemas econômicos e sociais não é do capitalismo, nem do comunismo, não é da bolsa nem do mercado; as tensões políticas e urbanas não se elevam por causa da migração (legal ou ilegal), ou por uma questão de distribuição de renda, não; o problema são os deuses, i dei! Esse jingle definirá então seu governo pelos próximos anos: i dei! i dei! Cai o pano. Nós rimos. 

PEQUENA NOTA CRÍTICA

O mise-en-scène é engraçado e prende a atenção durante as duas horas de peça. Valeria a pena nem que fosse apenas pelo Sósia. A iluminação e a música ajudam a criar ares de uma grande encenação. Cenografia e figurinos são elegantes e acertados. As atuações são impecáveis. 

É um clássico revisitado, merece toda importância, mas, ainda assim, essa versão de Pierattini acaba sendo um drama muito família, muito classe média e um pouco anódino. Sem exageros, vale-se de um humor inteligente e refinado, mas que pode soar bobo às vezes. Discute muitas questões cruciais, mas superficialmente. Trata de nossa relação conosco mesmos, retrata as dificuldades de um casal, faz sátira política e propõe uma investigação psicológica, mas tudo é leve.  

Ilaria Guidantoni, que, na minha opinião, fez uma das melhores críticas sobre a peça, escreveu: “a realidade é frequentemente aquela que queremos ver e o truque é que a responsabilidade nunca é pessoal”. Sim, essa é a proposição da peça. Embora o tema para a Filosofia, de Sócrates e Platão, passando por Husserl, até Levinas, seja, metafisicamente, muito relevante, me pergunto até que ponto, socialmente, atribuir a responsabilidade (escamoteada ou não) da realidade ao indivíduo é justo. 

A jornalista encerra: “O achado da peça é atribuí-la [a responsabilidade da realidade] aos deuses. Nenhum político jamais havia pensado nisso antes”. Eu acho que ela não conhece a política brasileira.


*Beethoven Alvarez é professor adjunto de Língua e Literatura Latina da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua na Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PosLing/UFF) na linha de pesquisa “Teorias do Texto, do Discurso e da Tradução”. Possui doutorado em Linguística (na área de Estudos Clássicos) pela Unicamp, com período sanduíche na University of Oxford (Corpus Christi College). É mestre em Letras Clássicas pela UFRJ e graduado em Letras (Port/Latim) pela UERJ.