FEDRA


Mito: Fedra
Texto: Jean Racine
Tradução e adaptação: Roberto Alvim
Temporada: 04 a 27.05.18
Local: Sesc Pompeia | São Paulo (SP) 
Direção: Roberto Alvim
Elenco: Juliana Galdino, Caio D’Aguilar, Luis Fernando Pasquarelli, Christian Malheiros, Nathalia Manocchio, Luiz Otávio Vizzon e Victoria Reis
Realização:  Club Noir e Cubo Produções
Idade: 16 anos
Duração: 60 min.

“Fedra”  é o mito da insurreição feminina contra o poder e as regras sociais. (...) Obra suprema do espírito humano, “Fedra” é a tragédia que brota do medo mais terrível: o de se apaixonar por aquilo que a sociedade, com suas leis e regras, não permite. A peça propõe uma discussão sobre a sexualidade feminina e sua dissonância em relação aos papéis sociais de mãe, esposa, cidadã... (Divulgação)

NOTA BENE
Apresentada como uma “leitura cênica”, a montagem de Roberto Alvim, do Clube Noir, toma a versão clássica francesa do mito de Fedra de autoria de Jean Racine (1639-1699), pautada pela rigorosa poética de Boileau. Reproduzo abaixo um trecho muito breve de minha dissertação em que trato do tema. A dissertação está integralmente disponível aqui.
  
O Renascimento francês também reconheceu em Sêneca um modelo dramatúrgico, embora tenha dado tratamento à temática e mesmo à expressão do teatro latino diferente do que ocorreu na Inglaterra. O palco inglês admitia cenas violentas e a ruptura da unidade de tempo, lugar e ação, enquanto na França prevalecia uma estrita poética neoclassicista.

A tragédia tinha que ser dividida em cinco atos e elevada em tom e tema, atrelada às três unidades: a ação, unitária, mas com peripécias, deveria decorrer ao longo de 24 horas imaginárias, num só lugar, com encadeamento de cenas sem lacunas, com entradas e saídas plausíveis das personagens.

Além das regras formais, conforme a doutrina delineada por Nicolas Boileau-Despréaux em L’Art Poétique, de 1674, o neoclassicismo se pautava por dois pressupostos estéticos (POCOCK 2010:5): “First, poetry must treat what is natural and probable; and second, in doing so it must be decent. In seventeenth-century terms, it must be vraisamblable and respect les bienséances”.[1]

Os dramaturgos Pierre Corneille (1606-1684) e Jean Racine (1639-1699) fizeram versões próprias das tragédias antigas, com maior ou menor adesão às peças gregas e latinas. No caso de Corneille, seu primeiro texto dramático foi Médée, encenado entre 1634 e 1635, publicado em 1639, em que o dramaturgo recupera longos trechos de Sêneca, mas altera pontos fulcrais da trama, por exemplo, colocando no centro das ações Egeu, rei de Atenas – que ocupa 45 versos na peça de Eurípides, mas nem aparece no drama latino – e apenas mencionando o assassinato dos filhos por Medeia, dentro do que se propunha como respeito a les bienséances, ao decoro.

A Medeia senequiana é ímpar na Antiguidade quando se trata de violação do decoro. Como que desafiando explicitamente a prescrição de Horácio,[2] a protagonista da peça latina mata os filhos em cena. A ação se desdobra em dois momentos – como se não bastasse a primeira morte a que um suposto público assiste, a protagonista chama novamente sua audiência a testemunhar o segundo assassinato, e o faz por meio da exigência de que Jasão presencie esse ato final  de vingança. 

Em Sêneca, o duplo filicídio, executado em cena, é o clímax da peça. Note-se que há cenas sangrentas em outras tragédias senequianas, como Hércules Furioso e Fedra, e que, mesmo entre os gregos, há o precedente do suicídio do herói Ajax na peça homônima de Sófocles.

Racine, no prefácio à sua peça Phèdre, encenada pela primeira vez em janeiro de 1677 e publicada nesse mesmo ano, afirma (1947: 540) que o tema foi tomado de Eurípides. Embora ele tenha mantido muitos pontos de contato com os textos da Antiguidade, inclusive com a tragédia senequiana (por exemplo, a confissão e suicídio de Fedra somente após a morte de Hipólito – mas ela toma veneno, não se enforca como em Eurípides, nem usa a espada como em Sêneca), Racine altera o desenvolvimento da trama ao inserir a personagem Arícia, existente na Eneida, como objeto do amor do jovem príncipe e que disputa com ele o reino de Atenas.

A intriga amorosa do mito original ganha complexidade com a inserção da intriga política, preservando, no entanto, a unidade da ação de acordo com a poética neoclássica. O decoro se deixa revelar nas modificações feitas às personagens. Como Racine informa no prefácio, Fedra já não é responsável pela calúnia contra Hipólito, transferida para a Ama, que se limita a contar a Teseu que o príncipe teria a intenção de, e não que teria, de fato, violado a madrasta.[3]




[1] “Primeiro,  a  poesia  tem  que  lidar  com  o  que  é  natural  e  provável;  e,  segundo,  ao  fazer  isso,  precisa  ser  decente.  Em  termos  do  século  XVII,  ela  precisa  ser  vraisemblable  e  respeitar  les  bienséances”.
[2] Arte  Poética,  v.185: ne  pueros  coram  populo  Medea  trucidet  (“que  Medeia  não  mate  os  filhos  em  cena”).
[3] Racine  sobre  Fedra  (1947:  540):“J’ai  même  pris  soin  de  la  rendre  un  peu  moins  odieuse  qu’elle  n’est  dans  les  tragédies  des  Anciens,    elle  se  résout  d’elle  même  a  accuser  Hippolyte.  J’ai  cru  que  la  calomnie  avait  quelque  chose  de  trop  bas  et  de  trop  noir  pour  la  mettre  dans  la  bouche  d’une  princesse  qui  a  d’ailleurs  des  sentiments  si  nobles  et  si  vertueux  [“Eu  me  preocupei  em  retratá-la  um  pouco  menos  odiosa  do  que  nas  tragédias  antigas,  em  que  ela  decide  por  conta  própria  acusar  Hipólito.  Julguei  que  a  calúnia  tinha  algo  de  muito  baixo  e  de  muito  mau  para  que  fosse  colocada  na  fala  de  umaprincesa  que,  por  outro  lado,  tem  sentimentos  tão  nobres  e  virtuosos”.]    Racine  sobre  Hipólito  (1947:  541):  Hippolyte  est  accusé,  dans  Euripide  et  dans  Sénèque,  d’avoir  en  effet  violé  sa  belle-mère:uim  corpus  tulit.  Mais  il  n’est  ici  acusé  que  d’en  avoir  eu  le  dessein.  J’ai  voulu  épargner  à  Thésée  une  confusion  qui  l’aurait  pu  rendre  moin  agréable  aux  spectateurs  [“Hipólito  é  acusado,  em  Eurípides  e  em  Sêneca,  de  ter  violentado  efetivamente  sua  madrasta:uim  corpus  tulit.  Mas  aqui  ele    é  acusado  de  ter  tido  a  intenção.  Eu  quis  proteger  Teseu  de  uma  confusão  que  poderia  torná-lo  menos  agradável  aos  expectadores”.]