ANTES 4 HORAS NO TEATRO DO QUE NO TRÂNSITO

NO PALCO DO TUSP: ORESTEIA.BR

Agora vai só o comentário. A ficha técnica já publiquei no post anterior.
Melhor, mudei de ideia, vou tentar uma crônica.

ANTES 4 HORAS NO TEATRO DO QUE NO TRÂNSITO

Hesitei muito antes de chamar o uber.

Sono atrasado. 
Dia longo. 
Coisas ainda por fazer. 
Quatro horas de teatro pela frente. 
Coisa insana. 
Fui.

O Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP) fica na rua Maria Antônia, na capital paulista, cenário da violência política que marcou a disputa entre universitários de correntes antagônicas em outubro de 1968. O espaço está fora do circuito comercial, mas abriga montagens que podem lotar seu espaço, como foi o caso de “História do olho: Um conto de fadas pornô-noir”, de Janaina Leite, em 2022. Eu vi. Agora não foi o caso. É pena.

Tinha mais gente no palco do que na plateia. Sério. Sempre que isso acontece me dá um nó por dentro. Mas, pra equilibrar o jogo de forças, tenho que dizer que já dei aula pra um aluno só. Mais de uma vez. A docência também é um palco. E, às vezes, você fala sozinha. É pena.

Então, tá: 240 minutos de peça pela frente, muitas cadeiras vazias, corpo e mente cansados. Prova de resistência. Mas não. Dispensei as duas oportunidades de saída estratégica nos dois intervalos de 15 minutos. Fiquei. Fiz bem.


@c.oviedoph

Oresteia.br é caleidoscópica. Dei um pulinho no dicionário Houaiss. É essa a palavra. Figurativamente quer dizer: imagens em constante mutação ou ainda sucessão vertiginosa, cambiante, de ações, sensaçõesEssa dinâmica é temática, cenográfica, musical.

A montagem é da trilogia Oresteia (ou Oréstia), de Ésquilo, tragediógrafo do século V antes da Era Comum (AEC), composta pelas peças Agamêmnon, Coéforas e Eumênides. Mas é também sobre o Brasil e a política local – um sonho de terror, nas palavras do encenador José Fernando Peixoto de Azevedo no podcast do TUSP.

“Eu reconheço um texto como clássico na medida em que eu reconheço nesse texto uma espécie de nexo que permanece. Esse nexo, pra mim, tem a ver com o confronto imaginado, intuído, por um autor em relação à sociedade, ao seu tempo, à experiência social, e algo desse nexo permanece como um problema. E, no caso do texto do Ésquilo, o que permanece é o confronto do presente com o passado com uma pergunta sobre como a democracia foi possível e como é possível viver a democracia como um regime de crise constante, que exige olhar pro passado, não para voltar ao passado, mas esse confronto do presente com o passado quase sempre tem a ver com um acerto de contas, com uma interrogação sobre o que, do passado, permanece como algo não resolvido, um passado que passou e não passou. E olhando pro texto do Ésquilo no confronto com nossa experiência, essa ideia de um passado que passou e não passou apareceu pra gente como algo muito atual. Acho que esse tipo de nexo é que define a atualidade de um clássico”.

Essa conversa deve fazer parte da experiência do espectador. Não faz tanto tempo, né, que a gente via a peça online e batia um papo com elenco e encenador logo em seguida. Perdeu-se um tanto com o isolamento social forçado da pandemia, mas ganhou-se outro tanto.

Agora que a gente sai de casa e vai pro prédio do teatro, acaba a peça e acaba tudo. Tem mais papo não. Faz falta, porque uma montagem como essa é um projeto intelectual, mais do que um evento cultural.


Só que não troco a presença física por nada.

Entrei. Sentei. Dez atores distribuídos no amplo tablado. Dois manequins infantis. Um piano. Uma mesa de som. Uma câmera ao vivo. Um telão. Um letreiro luminoso. Uma rampa de madeira. Máscaras. Tantas pecinhas coloridas!

A dinâmica da cena integra o espaço externo do TUSP, o pátio e a entrada do prédio com sua colunata, a partir das imagens captadas ao vivo e exibidas na sala. Quando Agamêmnon volta de Troia, algoz vitorioso, vem pela entrada da rua Maria Antônia. Sua cara, num berro que celebra a derrota do inimigo, explode no telão e vai-se construindo a expectativa dos seus passos sobre o tapete púrpura: hýbris e fatum.

Por trás da tela fina, delineia-se uma banheira. Por trás da tela fina, acontece um crime. Egisto, o amante, se insinua a Agamêmnon, receptivo a um ménage à trois. Pura enganação. Quem acaba na banheira é a profetisa desacreditada Cassandra. Egisto celebra a derrota do inimigo em pé sobre a banheira dos mortos. Também os assassinatos de Clitemnestra e Egisto ficam por trás do pano. A gente vê em preto e branco no telão. Na cara do público, só o sacrifício de Ifigênia, a primogênita, no começo do começo da função, incorporando a Ifigênia em Áulis, de Eurípides.

@c.oviedoph

O encenador diz que a câmera ao vivo funciona como “desdobramento e intensificação da presença”, levando a espaços que não estão imediatamente visíveis, deixando entrever situações paralelas à da cena, fazendo deslocamentos temporais.

A polifonia é muito, senão tudo, nessa montagem. Thai Muniz é a voz que atravessa as ágeis longas horas do espetáculo, sendo Corifeia (ela diz assim) nas duas primeiras partes e Atena no julgamento de Orestes. Como se elogia uma atriz sem soar piegas? Será que vale: Eu brindo a você, Thai! E à turma 71 da Escola de Arte Dramática (EAD/USP) que montou a @prezadaciadeteatro. É teatro universitário que já deixou de ser amador.

Thai Muniz é Atena @c.oviedoph

A surpresa não acaba. Não tem tédio.

Pílades ganha voz. O matricida se desnuda. Estão apaixonados.

O Coro de Anciãos usa máscaras e bengalas ritmadas. As Erínias adormecidas, despertadas pelo espectro de plástico de Clitemnestra, vestem verde-e-amarelo. Apolo é um santista portando branco. Eu contava ver um fusca amarelo no palco, como nas fotos de divulgação. Não veio.

@c.oviedoph

Pra fechar, o julgamento de Orestes. 

Na noite em que estive no júri, éramos oito. Se houvesse empate, caberia o voto de Minerva. A maior parte de nós, poucos que éramos, votou pela condenação do matricida. Resultado ignorado, Orestes inocentado. Alguém que também já esteve ali (@eioujonas) até disse no stories: votei errado. 

Mas, pra dizer a verdade, eu votei contra um assassino de mulheres. É muito marcante quando a atriz Daiane Gomes se recusa a "fazer o papel" de vítima de feminicídio/matricídio. 

Só depois vi que não era esse o espírito da coisa. O projeto da Oresteia.br coloca as Erínias/Fúrias como o atraso político, Orestes como a oposição. Companheiros, não cheguei lá.




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