IFIGÉNIA, de Tiago Rodrigues

 

Mireille Herbstmeyer (Clitemnestra) e Carolina Amaral (Ifigênia) / Jean-Louis Fernandez

 

Vou tratar de uma peça que, para meu pesar, não vou ver. A Ifigénia do dramaturgo português Tiago Rodrigues será levada ao palco entre 7 e 13 de julho no Festival d’Avignon, na França. Quem me dera...

Tenho duas motivações: depois de ter fracassado na tentativa de comprar o livro que reúne três peças de tema grego do dramaturgo, ator e encenador nascido em 1977 em Lisboa, recebi um exemplar gentilmente enviado pela professora Maria Fernanda Brasete, da Universidade de Aveiro.

Então, de posse do texto, posso ao menos comentá-lo e especular algo sobre o seu potencial de encenação. A peça estreou em 11 de setembro de 2015, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, do qual Tiago foi o diretor artístico (2014-2021). Nomeado em julho de 2021 o novo diretor artístico do Festival d’Avignon, o primeiro não francês a ocupar a função, ele assume em setembro. Leia aqui.

Tiago Rodrigues

Antes que eu me disperse entre outras informações, minha segunda motivação: documentar a mudança geracional no mundo dos (e elas?) encenadores de impacto internacional do hemisfério norte. Tiago substituirá Olivier Py, francês nascido em 1956, diretor do Festival d’Avignon desde 2013.

Como se vê, numa aritmética simples, a diferença de idade entre eles sequer soma uma geração (25 anos), mas o próprio Olivier encara de outra maneira, conforme se lê no texto de abertura que ele assina no programa do Festival deste ano, que pode ser consultado online e baixado em PDF aqui.

Ironicamente (?!), Olivier participa da programação deste ano como autor e diretor da peça “Ma jeunesse exaltée” (literalmente: “Minha juventude exaltada”), com duração de dez horas, incluindo intervalos. De acordo com o programa: “Olivier Py se apropria de uma figura mítica do teatro, que, em losangos remendados multicoloridos, torna-se o herói extravagante de uma busca pela transcendência” (p. 11: “Olivier Py s’approprie une figure mythique de la comédie qui, calissonnée, rapiécée et multicolore, devient le héros flamboyant d’une quête vers la transcendance”). Trata-se, é claro, de uma recriação do Harlequim, personagem típico da commedia dell’arte, agora reconfigurado como um entregador de pizza.

Olivier Py

Olivier Py, diretor do Festival d’Avignon de 2022: 

Cada geração testemunha o fim de um mundo e o início de outro. Entre os dois está um caos, uma cacofonia, um teatro inacabado. Cabe a cada geração talvez mudar o curso do destino, mas acima de tudo inventar sua própria história.

[...]

Mas a guerra também começa com uma perversidade da narração, o discurso nacionalista, a colonização da memória, a falsificação do patrimônio, são as histórias doentias que só as histórias corretas podem contrabalançar.

[...]

O que eu poderia desejar? Que esta luta, que foi a luta da minha vida, seja a de quem vier. Eles se sairão melhor do que nós, ainda que estejam em um mundo ainda mais difícil. Uma luta que nunca vai acabar, mas por que deveria acabar? Uma luta que em si já é uma recompensa assim que se assume o compromisso, que funda as comunidades de espíritos, que torna palpável a esperança, que desvela a comunidade e a identidade e projeta um destino mais nobre para uma geração. Numa palavra, a construção de uma história que salva.

 

Chaque génération assiste à la fin d’un monde et au commencement d’un autre. Entre les deux, c’est une pagaille, une cacophonie, un théâtre inachevé. Il appartient à chaque génération, peut-être de changer le cours du destin, mais surtout d’inventer son propre récit.

[...]

Mais la guerre aussi commence par une perversité de la narration, le discours nationaliste, la colonisation de la mémoire, la falsification de l’héritage, sont les histoires malades que seules des histoires justes peuvent contrebalancer.

[...]

Qu’est-ce que je pourrais souhaiter, moi ? Que ce combat qui a été le combat de ma vie, soit celui de ceux qui viennent. Ils feront mieux que nous, alors qu’ils sont dans un monde encore plus difficile. Un combat qui ne finira jamais, mais pourquoi devrait-il finir ? Un combat qui est en soi déjà une récompense sitôt qu’on s’y engage, qui fonde les communautés d’esprits, qui rend palpable l’espérance, qui dénoue le communautaire et l’identitaire et donne formulation plus grande au destin d’une génération. En un mot, la construction d’un récit qui sauve.

 

É claro que a recente morte de Peter Brook, aos 97 anos, reforça essa perspectiva das gerações e das migrações teatrais na Europa, visto que o inglês se transplantou para a França. Meu post sobre Brook aqui.

 

Anne Théron

Então, afinal, sobre a peça Iphigénie, que tem direção de Anne Théron; tradução para o francês, dramaturgismo e assistência de direção de Thomas Resendes; cenário e figurinos de Barbara Kraft; luzes de Benoît Théron; som de Sophie Berger; e elenco composto por Carolina Amaral (Ifigênia), Mireille Herbstmeyer (Clitemnestra), Fanny Avram, João Cravo Cardoso, Alex Descas, Vincent Dissez, Julie Moreau, Philippe Morier-Genoud, Richard Sammut. Duração de 95 minutos.

Anne Théron é apresentada como encenadora que coloca as mulheres no centro dos acontecimentos. Veja esta brevíssima apresentação que ela faz sobre a montagem no Festival d’Avignon aqui (em francês fácil e legendado).

A encenadora se deslumbra com a mãe de Ifigênia recriada pelo dramaturgo português: “Clitemnestra é uma personagem gigantesca. Ela cobra dos homens que desistam. (...) É uma mulher encolerizada, determinada a fazer de Agamêmnon o responsável pelo próprio crime frente à história. Nesse sentido, ela também constrói outra memória da tragédia para nós que a vemos hoje. É vertiginoso!” (“Clytemnestre est un personnage gigantesque. Elle demande aux hommes de renoncer. (…) C’est une femme en colère fermement décidée à ce qu’Agamemnon soit responsable de son crime face à l’histoire. En ce sens, elle fabrique ainsi une autre mémoire de la tragédie pour nous qui la regardons aujourd’hui. C’est vertigineux !).

Material complementar inclui a transcrição de uma entrevista sucinta com encenadora (em inglês, aqui), que aborda a questão fulcral desta dramaturgia: o metateatro.

O comentário da diretora acerca disso poderia ser assimilado assim, de bate-pronto, mas alerto que não se deve, pois, quando ela diz que “estamos vendo atores tentando recriar o mito baseados nas memórias que têm dele” (“We are watching actors trying to recreate the myth based on their memories of it”), Anne se equivoca: não se trata de atores colocando em xeque as falas que lhes são atribuídas, mas das personagens antes criadas por Eurípides desafiando seu autor e toda a tradição teatral do Ocidente.


Foto do cenário por Barbara Kraft

O Coro abre a peça num prólogo dirigido à plateia e estabelece as regras do jogo teatral: the willing suspension of disbelief (Coleridge, 1817) arrevesado, porque, rompida a quarta parede desde o início, pede-se do espectador o voto de confiança na tradição trágica, que será desestabilizada a todo momento, porém, não traída. 

CORO

(...)

Vocês sabem, e podem vê-lo, é evidente

Que nada disso é verdade

E mesmo assim vocês confiam no que vos dizemos

Porque se lembram como nós nos lembramos

Não confiam nas luzes, que são a memória das Plêiades

Não confiam nos panos, nos corpos, no espaço

Que são a memória de Áulis e dos gregos

Confiam na tragédia

Confiam no que se lembram da tragédia

Confiam porque a tragédia é de confiança

Acaba sempre mal

 

Durante a leitura silenciosa do texto dramatúrgico, que se configurou todinho em ilusão cênica na minha mente, fui perseguida pelo espectro da traição à tradição trágica o tempo inteiro, o que pra mim foi o mais maravilhoso dessa experiência nova com a velha Ifigênia em Áulis.

Acontece que esta peça em português é o processo de confecção teatral em si mesmo, work in progress, e a memória faltosa das personagens alimenta a expectativa de desfechos inéditos. São personagens em dilema sobre o encadeamento das suas ações no palco. 

Cena 5

MENELAU

Mas não te lembras de como isto acaba? Não te lembras de que, faças o que fizeres, o fim é sempre o mesmo?

AGAMÉMNON

Não me lembro de tudo. Talvez me possa esquecer. Talvez me esqueça e com isso consiga salvar minha filha.

 

Outro dispositivo metateatral é o Coro funcionando como ponto, ou seja, soprando falas para as demais personagens (e aqui há que falar da peça Sopro, do mesmo Tiago Rodrigues: veja este post).

Cena 3

CORO

Lembro-me de que Agamémnon pergunta: o que é traição?

AGAMÉMNON

Sim, o que é traição? Traição não é apenas escolher a quem se é leal? Quem se ama?

CORO

Lembro perfeitamente que Agamémnon chora.

AGAMÉMNON

Não. Agamémnon não chora. Agamémnon não tem por que chorar. Ele muda de ideias. O que é que ele faz? Não me lembro.

 

Clitemnestra aparece na sexta das quinze cenas que compõem a tragédia, uma personagem relutante em desempenhar seu papel. 

Cena 6

CLITEMNESTRA

Lembro-me deste lugar. Lembro-me deste momento. De estar aqui. Parece que foi há muito tempo que estive aqui. Lembro-me de fazer esta viagem, acompanhada de meus filhos. Lembro-me de chegar aqui com Ifigénia, Electra e Orestes. De estar feliz durante uns instantes. De reparar que não havia vento. De ficar séria, um pouco assustada. Lembro-me como se já tivesse vivido tudo isto ou como se alguém me tivesse contado uma história em que tudo isso acontecia. Mas não me lembro do que acontece a seguir. Tenho uma vaga memória de que acontece algo estranho. Não. Não é estranho. Algo terrível. Não sei se me lembro ou se é um pressentimento. Uma sensação...

 

Esta peça só pode existir no âmbito do que chamamos de “recepção crítica dos clássicos”. Apenas o distanciamento (o gap de que falam Beard & Henderson em Antiguidade Clássica – uma brevíssima introdução) possibilita olhar tão inescrupuloso e amoroso ao mesmo tempo. Se há uma frustração inicial com a manutenção do desfecho clássico e – pior – com a caracterização de Agamémnon não como um homem mau, mas “honesto” (RODRIGUES, 2019, p. 43), por fim, pensando bem, é preciso reconhecer que o amor do autor pela tragédia vence no final. E ele bem que avisou: a tragédia é de confiança porque sempre acaba mal.

Renata Cazarini

 


A classicista Maria do Céu Fialho, da Universidade de Coimbra, publicou em 2019 um artigo acadêmico sobre a trilogia dos Atridas recriada pelo dramaturgo português. Ela apresenta a biografia do autor e comenta os três textos do livro. Aqui o link para o artigo.


 


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