O ÉDIPO DE PETER BROOK (1925-2022)

 


É... infelizmente eu nunca tive a oportunidade de ver uma peça de teatro encenada por Peter Brook. E eu queria muito, acredite. Em 1968, em Londres, ele dirigiu a tradução que o poeta inglês Ted Hughes (1930-1998) fez, sob encomenda do próprio Brook, do Édipo escrito em latim por Sêneca no início da nossa era. 


A montagem foi um choque para uma audiência conservadora. Não consegui até hoje localizar qualquer trecho de gravação em filme, mesmo assim, resgatando críticas teatrais de época e ensaios sobre a vida e a obra de Brook, bem como as de Hughes, escrevi umas tantas páginas na minha tese de doutorado.


O ideal é você fazer um download aqui, mas vou apresentar um recorte que pode interessar mais. As citações em inglês estão em notas de rodapé na tese, que eliminei no post.


Excerto das páginas 234 a 237:


Conforme se lê em Directors in perspective: Peter Brook (HUNT; REEVES, 1995, p. 121), a escolha recaiu sobre Hughes para a versão do Édipo de Sêneca porque Brook desejava um novo texto, mas não uma nova peça de dramaturgos consagrados como John Arden ou Edward Bond: “Quando se descobriu que o mais vigoroso e rigoroso dos poetas ingleses modernos ainda por cima compartilhava do entusiasmo pela mitologia, ofereceram o trabalho a Ted Hughes”.

   


Pelo que se pôde reconstituir da encenação, que abriu em 19 de março de 1968 a temporada, a qual parece ter se estendido até 03 de agosto, segundo o cartaz da montagem [acima], com sessões distribuídas ao longo da semana, incluindo sábados à tarde, a performance coral de encerramento do espetáculo teria chocado público e crítica. O texto de Hughes apenas informa que o Coro celebraria com dança a partida de Édipo, mas não dá detalhes. Sêneca nunca encerra suas peças com uma ode coral, portanto, a solução foi teatral, não literária. Lembre-se que Hughes disse ter seguido de perto as odes corais de Sêneca, exceto pela última. Mas também sabemos que ele chegou a compor “Song for a Phallus” [publicado depois como poema] para o encerramento.


Num relato sobre a história do Old Vic, que abrigava as produções do National Theatre à época, a montagem modernizada de Brook é tratada como um golpe (a blow) em Sir Laurence Olivier que, adoentado com apendicite, havia transferido a direção do Édipo de Sêneca para o convidado. Terry Coleman (2014) relata que Brook queria que a montagem tivesse uma nota de alegria no final, com os atores correndo entre a plateia, o que Olivier considerou “uma versão horrendamente agitada de God Save the Queen”.


Após a contundente fala final que cabe ao protagonista, era deslocado para o palco um objeto cênico de quase dois metros. Retirado o tecido que o cobria, se revelava um grande falo dourado. Os membros do Coro passeavam, então, pela plateia, acompanhando o falo e entoando um estribilho jazzístico. Pelo relato de Coleman, na estreia, os atores convidaram o público a se juntar a eles numa dança ritualística da fertilidade em torno do falo. Gielgud, o ator principal, se recusou a participar. Coleman diz ainda que a celebração final durou só algumas sessões: “A zombaria toda foi ridicularizada pelos críticos e desapareceu depois de umas poucas apresentações”. 

Irene Worth (Jocasta) e John Gielgud (Édipo)


Michael Hallifax, diretor do National Theatre, faz dura crítica no livro Let me set the scene: Twenty Years at the Heart of British Theatre 1956 to 1976 acerca do desfecho da peça.


O que era o reverso de uma masque incluía os atores e a banda dando voltas no auditório. O estilo despojado me lembrava uma bandinha amadora, e todo o profissionalismo pareceu se perder. Pode ter sido necessário na Grécia, cerca de dois mil anos atrás, mas não senti necessidade de tal digressão no Old Vic em 1968. Eu queria reter o impacto da peça com suas duas poderosas performances, de Irene Worth e Sir John Gielgud, apoiados pela força dos outros trinta e quatro atores do National Theatre. (HALLIFAX, 2004, p. 244)


Ian Scott-Kilvert, no artigo “Seneca or Scenario?”, publicado na mesma edição da Arion em que primeiro saiu o texto de Hughes, relata sua experiência na estreia em certo nível de detalhes, mas deixa de informar, por exemplo, sobre a cena do aruspício, que não pôde ser recuperada. Ele conta que, ao adentrar a sala, os espectadores se deparavam com membros do Coro espalhados pelo espaço, preparando-se com exercícios físicos e vocais. Um grande cubo dourado estava no centro do palco e, iniciada a peça, com duração de 90 minutos, as laterais dele eram baixadas formando quatro rampas de acesso a uma plataforma. 


Antes disso, no entanto, a plateia na penumbra, o cubo passava a girar sob um foco de luz que ofuscava a visão dos espectadores com os reflexos. O Coro começava a murmurar e a bater as mãos em crescendo até silenciar abruptamente. O enigma da Esfinge, os versos iniciais de Hughes, passava a ser sussurrado pelo Coro em tom de ameaça. Para Scott-Kilvert (1968, p. 501), isso transportou o público para um ambiente de sol escaldante, terra ressequida e ar empestado como o de Tebas, num “assalto hipnótico” aos olhos e ouvidos. Essa imersão no ambiente sufocante de Tebas é elemento fundamental da dramaturgia da peça. 


Mas a elocução dos atores desagradou o crítico, que parece responsabilizar o texto de Hughes, numa curiosa oposição ao que Gielgud e Worth comentam a respeito. Depois de elogiar o protagonista nos monólogos iniciais, Scott-Kilvert diz (1968, p. 506) que à medida que a ação avança, sua atuação é cada vez mais afetada pelo ritmo empregado pelo tradutor nas falas: frases de duas ou três palavras, em staccato, arrancadas à força do ator.


Ted Hughes

Como atestado por Turner, o primeiro tradutor da peça, a leitura para a companhia teatral feita por Hughes do seu próprio texto tinha sido apoteótica. Impressão semelhante guardaram os protagonistas. Num livro de homenagem póstuma ao poeta, Gielgud (apud SAGAR, 2009, p. 7) deu o seguinte depoimento: “A leitura de Hughes, que durou só uns 40 minutos, foi uma experiência eletrizante, e nós nos apinhamos enfeitiçados pelo poder da peça em si, especialmente pelo tratamento brilhante dado pelo poeta ao material”. 


No mesmo livro, Worth (apud SAGAR, 2009, p. 7) também foi contundente: “Ele marcava as frases curtas, duras, estoico e forte. Depois que Ted escreveu o discurso de morte de Jocasta, ele o leu para nós. Eu não quero perder nunca aquele som. Ele leu com uma habilidade que fazia as palavras virem à tona como se ele as tivesse acabado de inventar”.


Blakely, que fez o papel de Creonte, numa entrevista a The Drama Review, relatou (CROYDEN, 1969, p. 120): “Não tínhamos permissão de finalizar uma sentença. Minha grande fala dura uns 15 minutos; eu tinha que executá-la em termos de ritmo e retórica e em termos de diferentes tons de voz”.


Hughes mesmo explicou que a elocução que o diretor queria não era personalizada, deveria ser pouco natural, acompanhando a econômica movimentação no palco. Worth (apud SAGAR, 2009, p. 7-8) admitiu não ter alcançado a potência do texto de Hughes enquanto elogia Gielgud na sua fala final, vulcânico e majestoso: “Guiem-me”. Após essa fala, um objeto alto, coberto com seda vermelha e hera, é levado ao palco vazio: revela-se o grande falo dourado, no relato de Scott-Kilvert (1968, p. 507). 


Peter Lewis, jornalista que escreveu The National: a Dream Made Concrete, uma das várias publicações sobre a história do National Theatre, afirma (1990, p. 40) que o falo dourado não acrescentou muito à montagem nem mobilizou a plateia, que não entendeu o efeito da sátira ou celebração coletiva que se seguia à tragédia, e não participou da dança.



Os textos em latim e em inglês dos Édipos de Sêneca e Hughes e suas respectivas traduções estão na tese, que não aborda o teatro como literatura exclusivamente. Há mais de cem menções a Brook na tese, e não se trata de uma tese sobre o encenador inglês, que realizou, entre tantas produções prestigiadas, “Orghast”, outra peça em colaboração com Hughes. Encenada em 1971 num festival de teatro no Irã, numa nova língua que dá nome à peça, criada a partir do latim, do grego e do avesta, ecos de Sêneca estão também nessa obra de Hughes, como o poeta deixa claro ao relatar em carta o processo de elaboração.


Finalmente, eu consegui uma peça de cerca de uma hora e meia, com ocasionais passagens em grego (de Prometeu acorrentado [Ésquilo]), uma passagem em latim (do Hércules furioso, de Sêneca) e muito avesta (textos sagrados do Zoroatrismo, pronunciados por uma mulher curda possuída... as leituras dela estão entre os sons mais belos que já ouvi). O resto da peça era na língua que eu inventei – mais ou menos um método de frustrar a tendência do ator de pronunciar só ruídos com aparência de significado e forçá-lo a desenterrar algo autêntico do seu diafragma. Era um tipo de notação musical, na verdade. (HUGHES apud HARDWICK, 2009, p. 53)


Jornais de São Paulo publicaram obituários breves demais quando se trata de Peter Brook, mas numa época em que o teatro é destratado, nem dá pra estranhar. Deixo dois links: Folha & Estadão. No perfil @grupogalpao, no Instagram, há um depoimento do ator Eduardo Moreira que vale a leitura.


Em 12 de março de 2021, eu acompanhei uma live do ator e diretor Tim Robbins com Peter Brook. Fiz uns prints da tela e, como homenagem, os coloco aqui, na esperança de dar vida a esse gênio do teatro. Se você quer assistir, clica aqui (em inglês, com legenda em espanhol).

Renata Cazarini





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