+ DUAS MEDEIAS NA AGENDA & MUITO +
Tem teatro já aberto e tem teatro que está para abrir, apesar da pandemia, mas – até onde eu sei – a produção cênica (pra não chamar de teatral) persiste principalmente no modo remoto. Tem coisa acontecendo, só que nem tudo é novidade. E tá bem, não precisa ser tudo novo. Algumas produções já contam com recursos da Lei Aldir Blanc, aquela do apoio emergencial aos artistas, que custou tanto a sair. O projeto de aplicação dos valores pode variar, desde a disponibilização de peça já consagrada e gravada há anos (Milagre Brasileiro, do Coletivo Alfenim) até inéditos vídeos-cênicos (Pasífae, um grito preso na garganta, da Cia. Crisálida).
A circunstância do não-presencial facilita alcançar a produção cênica para além do eixo Rio-São Paulo, agora veiculada com frequência no Youtube. Então, neste apanhado geral que faço aqui, tem Amapá, tem Ceará, Paraíba e Pernambuco também. Tem Medeia, de novo, e tem Medusa, mas também aparecem Pasífae, Ariadne e Fedra numa leitura engajada do mito do labirinto do Minotauro.
Pra encerrar, antes do roteiro que recomendo, vale destacar que as nomenclaturas continuam instáveis mesmo com quase um ano de pandemia, ou seja, a produção cênica gravada pode ser chamada teatrofilme (Medeia por Consuelo de Castro, Cia. BR116) ou visoleitura dramática (Coração-tambor, por Emerson de Paula) ou vídeo-cênico (Pasífae, Cia. Crisálida). É tudo audiovisual: boas experiências, descobertas prazerosas, mas não são o teatro de que sinto tanta falta.
Texto de Consuelo de Castro (1946-2016)
Cia. BR116
Canal no YouTube
Estreia: 7 fev.2021 (domingo) 20h00, seguida de papo com os diretores.
Temporada: até 13 mar.2021
Duração: 60 min.
Audiovisual em preto e branco
Direção: Gabriel Fernandes e Bete Coelho
Elenco: Bete Coelho (Medeia), Flavio Rocha (Jasão), Roberto Audio (Creonte), Michele Matalon (Ama), Luiza Curvo (Glauce), Matheus Campos (Apsirto).
A história de Medeia contada não por homens, mas por outra mulher. Misturando duas linguagens, cinema e teatro, a trupe encena a tragédia escrita por uma das maiores dramaturgas brasileiras do nosso tempo. Em 1997, Consuelo de Castro escreveu sua versão do famoso mito grego, intitulada Memórias do Mar Aberto – Medeia conta a sua história. A narrativa de Consuelo é contundente, visceral, atual e não maniqueísta. Consuelo salienta também a traição política, além da amorosa, sofrida por Medeia. Deusa, guerreira, amante e mãe, a voz de Medeia se confunde com a da autora. (divulgação)
Dá pra ver uns teasers no canal da Cia. BR116, que está completando uma década.
Tem também um vídeo de 2017 no YouTube do canal Arte1 com Bete Coelho como a Medeia do texto Memórias do mar aberto – Medeia conta sua história, peça de Consuelo de Castro, de 1997. (5 min.)
Eu sugiro ouvir na Cultura FM Consuelo de Castro, falecida em 2016, sobre o lançamento da obra que reúne sua versão “muito louca” – segundo a própria autora – de Medeia. O livro está esgotado. (9 min.)
Tem também uma reportagem da Folha de S. Paulo sobre o novo teatrofilme.
Ensaio Medea Matéria
Texto de Heiner Müller
Biblioteca Mario de Andrade
Canal no Youtube
Exibição: 8 fev.2021 (segunda-feira) 19h00
Direção: Aury Porto e Yghor Boy
Elenco: Aury Porto (Medeia)
Duração não informada
Ensaio em imagens e vídeo de uma parte da encenação do espetáculo de 2019 Medeamaterial. (divulgação)
Parece tratar-se de uma edição audiovisual do espetáculo da mundana cia. que esteve em cartaz no Sesc Pinheiros em janeiro de 2019, que eu vi e sobre o qual escrevi. Veja o post daquela época.
Mais info e fotos no site da mundana cia.
Coração-tambor (cena amapaense)
Texto de Emerson de Paula
Direção: Emerson de Paula
Elenco: Nelma Silva (Medeia)
Duração: 9 min.
Assistido em 20 jan.2021 e em 28 set.2020
Canal do NUTEA no YouTube.
Visoleitura dramática baseada no mito de Medeia em diálogo com a dançadeira do Marabaixo, uma das maiores manifestações culturais do Amapá, norte do país. (divulgação)
Eu já tinha visto e escrito sobre essa visoleitura dramática, termo cunhado pelo professor Emerson, da Universidade Federal do Amapá (Unifap), para sua produção. Agora está disponível para todos. Recomendo. Depois, leia meu post anterior.
Processo Medusa (cena pernambucana)
Dramaturgia coletiva.
Núcleo Biruta de Teatro.
Direção: Antonio Veronaldo.
Elenco: Cristiane Crispim, Juliene Moura, Camila Rodrigues, Letícia Rodrigues, Érika Suylla, Joana Crispim, Laiane Amorim, Graciane Lacerda, Val Nunes, Yasmin Rabelo, Luisa Crispim, Amanda Martins, Cíntia Naara, Milena da Silva, Jhennyson Ferreira e Felipe Paixão.
Técnica: Hannah Lima.
Duração: 50 min.
Assistido em 26 jan.2021
Canal do JGE no YouTube
Revisando o mito da Medusa na atualidade, a cultura do estupro é abordada em cena, afirmando a luta feminista como instrumento de superação da sociedade patriarcal que violenta as mulheres. A dramaturgia é atravessada por questões que interligam os conceitos de corpo, a mulher e a democracia e perpassam vivências dos corpos femininos desde a infância. (divulgação)
Comentário
O espetáculo foi transmitido e continua disponível no canal do festival Janeiro de Grandes Espetáculos (JGE) 2021, reunindo apresentação de escolas de teatro.
O pessoal – ou melhor, a pessoal, porque são quase todas mulheres – da trupe Biruta é de Petrolina. Atrizes jovens, mas algumas delas já bem resolvidas, pelo que pude constatar. Fazem um teatro engajado e, em alguns momentos, panfletário, o que cansa um pouco, embora eu ache importante tentar a mobilização do espectador – no caso, da espectadora, porque o elenco faz uma campanha pela denúncia da violência contra mulher divulgando o telefone 180 durante a peça, recorrendo – claro! – à música “Maria da Vila Matilde”, de Elza Soares.
As meninas dão um basta a serem chamadas de “princesas”, dizendo: “Eu sou um monstro”. E um ponto alto é quando há uma gag humorística: uma das atrizes, tentando sintonizar no rádio uma canção, só se depara com letras que parecem ser depreciativas no trato com a sexualidade feminina e até indutoras da violência contra a mulher: um pout-pourri constrangedor para a atriz e para nós, brasileiros e brasileiras, do público. Um bordão que adotam é uma convocatória: “Então, mulheres, levantem-se, pois a revolução será feminista ou não será!” Aliás, me lembra a Medeia Negra, de Marcia Limma: “Levanta, mulher, levanta. Com patriarcado é assim: se conseguir, mulher, converse. Se não der, mate!”
O mito de Medusa aparece pontualmente no espetáculo, mas não importa que não seja uma peça sobre o mito. Importa o que o mito se torna nas falas das jovens atrizes. Não sobre este espetáculo, mas sobre o mito de Medusa como catalisador do movimento feminista no teatro, leia este post anterior.
Renata Cazarini
Pasífae – Um grito preso na garganta (cena cearense)
Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc
Cia. Crisálida
Texto: Juliana Veras
Roteiro e direção: Juliana Veras e Tim Oliveira
Elenco: Elaine Cristina, Eloíza Temóteo, Ohana Sancho, Rafaely Santos, Jéssy Santos, Juliana Veras.
Estreia: 30 jan.2021
Duração: 18 min.
Assistido em 30 jan.2021
Canal da JuvTV no YouTube
O vídeo-cênico Pasífae, um grito preso na garganta gira em torno da personagem da mitologia grega Pasífae. Ela é a rainha da Ilha de Creta, esposa do rei Minos, e passa toda a sua existência trancafiada na sua própria angústia e silêncio para não ferir a moral e os bons costumes da sociedade cretense. Em nossa pesquisa, utilizamos o mito para trazer à tona a temática da violência contra a mulher, por considerarmos um assunto de máxima urgência e que precisa ainda ser debatido, especialmente no período de isolamento social. O vídeo apresenta a performance de seis mulheres da Companhia Crisálida de Teatro que encarnam Pasífae e tantas outras mulheres mundo afora, para falar dos gritos presos de todas nós. (divulgação)
Comentário
O audiovisual constituído só de externas, à beira-mar, estabelece muito bem as fronteiras de uma ilha, a de Creta, lar do Minotauro e de sua mãe Pasífae e do pai, o touro branco, não o rei Minos. Touro branco que é um símbolo da cobiça de Minos, corrompendo todos ali, segundo a peça. Pasífae, não se sabe bem, age ou por vingança ou violência ou paixão: “Será que Pasífae desejava viver essa paixão para libertar-se por dentro por sentir-se incapaz de mudar o próprio destino?”, pergunta a voz em off no vídeo. A figura mítica é tomada como exemplo da voz feminina silenciada, daí o grito preso na garganta. Ariadne, filha de Pasífae e de Minos, mulher vítima do abandono, mentira e traição, que cedeu a Teseu a saída do labirinto, diz: “Com a porra deste fio eu devia era me enforcar”, numa associação direta entre violência psicológica e suicídio.
Até mesmo Fedra, ainda pequena e inocente, é enredada na história do labirinto, não tanto aqui, mais na produção seguinte: O pequeno labirinto de Fedra. Enquanto o labirinto em Pasífae é traçado apenas na areia, o pirulito de Fedra criança trará o mesmo design do caracol. Além disso, canções no modo acústico fazem a ponte entre as duas produções e promovem a sororidade: “O sol que nasce na tua ilha é o mesmo sol daqui”.
Renata Cazarini
O pequeno labirinto de Fedra (cena cearense)
Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc
Cia. Crisálida
Texto: Juliana Veras
Roteiro e direção: Juliana Veras, Tim Oliveira e Jéssy Santos.
Elenco: Jéssy Santos (Fedra), Juliana Veras (Pasífae), Paulo de Souza (Minos), Rafaely Santos, Elaine Cristina, Eloíza Temóteo, Ohana Sancho.
Duração: 18 min.
Canal do CCBJ no YouTube
O pequeno labirinto de Fedra é um vídeo-cênico poético-documental da Companhia Crisálida de Teatro sobre o universo da criança. A proposta é traçar uma teia de questionamentos para as crianças e os adultos que com elas convivem, com o intuito de provocar, pelos caminhos da arte, um diálogo sobre a importância de ouvir as crianças. O trabalho é inspirado nos conflitos e vivências da criança Fedra, uma recriação da personagem da mitologia grega, irmã mais nova de Ariadne, e no mito do labirinto do Minotauro. (divulgação)
Comentário
As cenas externas do vídeo-cênico Pasífae são substituídas por cenas internas nesta produção, e o que há de alegórico na primeira dá lugar ao realismo agora, com depoimentos do elenco sobre sua infância e a Fedra-menina de hoje sendo alijada do segredo familiar até que, alcançando o espaço proibido, grita para a irmã mais velha Ariadne: “Você quer o labirinto só pra você!” Assim, o labirinto e a vitória sobre o Minotauro parecem representar o objeto do desejo, na figura do herói Teseu, que, de acordo com o mito, abandona Ariadne e desposa, ao fim, Fedra.
Como explica a roteirista e diretora Juliana Veras, “a Fedra adulta, na mitologia grega, vive situações que não consegue processar muito bem e tem um fim da vida bem trágico; na peça de teatro que estamos montando, Fedra vem criança, antes de tudo isso”. A peça é Oniromante – Ariadne e as cartografias de um Labirinto, que já mencionei num post anterior. Conflitos e vivências da infância estarão em foco na peça, refletindo e alertando sobre as decorrências da falta de diálogo com as crianças.
No vídeo-cênico, a atriz Jéssy Santos, 29 anos, desempenha o papel de Fedra-menina com total domínio da cena.
Renata Cazarini
Milagre brasileiro (cena paraibana)
Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc
Coletivo Alfenim
Duração: 60 min.
Assistido em 28 jan.2021
Canal do Coletivo Alfenim no YouTube
Milagre Brasileiro é um espetáculo experimental que aborda os “anos de chumbo” da ditadura militar, culminando com a decretação do AI-5. Seu foco é o “desaparecido político”. Sujeito cuja estranha condição, nem morto nem vivo, serve de ponto de partida para a investigação de um dos períodos mais sombrios da história brasileira. A partir da experimentação de novas formas narrativas, e com a execução ao vivo de sua partitura musical, o espetáculo põe em cena a figura mítica de Antígona para dialogar com nossos mortos. Também utiliza como referência o “teatro desagradável” de Nelson Rodrigues e seu “Álbum de Família”. (divulgação)
Nota bene
A peça é originalmente de 2010. A gravação agora disponível na íntegra parece ser de uma montagem de 2017, conforme este teaser publicado há quatro anos.
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