MEDUSA SE VINGA



Recente polêmica em torno da instalação em Nova York de uma estátua de Medusa levando a cabeça de Perseu – isso mesmo! – rendeu um longo artigo no The New York Times, traduzido e publicado aqui no Brasil pela Folha de S.Paulo. Clique nos nomes dos jornais para lê-los.


 
post reeditado em 04/2021

O que motiva este blog de teatro a abordar o tema é que temos no repertório da Cia Les Commediens Tropicales a peça Medusa Concreta, essencialmente trazendo a mesma temática que a estátua feita por Luciano Garbati, um argentino radicado nos Estados Unidos. A estátua é de 2008, segundo o NYT, mas agora foi selecionada como instalação temporária, simbolizado a busca por justiça, numa praça da cidade, onde se situa o tribunal em que foram julgados casos de assédio e de agressões sexuais denunciados pelo movimento #MeToo. Em comum entre a peça e a estátua, a opção pela versão ovidiana do mito, em que Medusa seria uma bela sacerdotisa de Atena, violada no templo pelo deus dos mares, Posídon, e que foi culpabilizada sendo ela a vítima da agressão. Atena transforma os belos cabelos da jovem em serpentes e lhe atribui seu olhar petrificador. Vale lembrar que também é Atena quem guia os passos de Perseu na decapitação de Medusa e recebe depois a cabeça como prêmio, que vai parar no seu escudo de guerreira. 


Como relata o jornal norte-americano, a estátua gerou polêmica: por que a cabeça de Perseu e não a de Posídon? Por que um artista do sexo masculino? Por que a figuração de uma mulher sensual nua? Garbati disse que partiu da obra do século XVI de Benvenuto Cellini, instalada numa praça de Florença, para questionar o modelo e a tradição. A estátua de Garbati deve ficar em exibição em Manhattan até abril de 2021. O tema é atual. O Metropolitan Museum of Art (Met) organizou em 2018 uma exposição sobre Medusa intitulada Dangerous Beauty. Veja o catálogo.


 

No Brasil, a montagem de Medusa Concreta tratou precisamente da culpabilização da vítima de agressão sexual e inseriu a violência contra a mulher negra na performance. O espetáculo foi concebido como teatro de rua, uma tragicomédia, com música ao vivo e discurso de engajamento. Houve várias encenações em São Paulo. O post de abril de 2018 acaba de ser atualizado e pode ser lido aqui.

Eu vi a peça apenas em maio de 2019, numa programação especial do Sesc, mas não cheguei a elaborar um comentário. Falha minha. Medusa Concreta merecia.

Um dos pontos altos da montagem a que eu assisti foi quando Perseu, como um pregador religioso, sai para a rua e faz uma condenação aberta à violência contra a mulher, ao machismo, ao patriarcado. Medusa é a deusa cuja palavra precisa ser ouvida. Um trecho da pregação de cerca de 8 minutos:


Eu vi Medusa! [repetidas vezes] Como Saulo viu a luz de Cristo e virou Paulo, eu vi Medusa. Meus olhos se abriram e tudo me foi revelado. [...] Eu encontrei Medusa e, quando eu a vi, eu virei pedra. E uma voz me perguntou: – Perseu, por que me persegues? E eu respondi: – Quem és tu? E a voz me replicou: – Eu sou Medusa, a quem tu persegues, Perseu. E pedra eu virei. Três dias e três noites parado. – Estátua! [como na brincadeira] Eu era pedra, irmão. Mas Medusa me salvou. Medusa me libertou. Medusa me batizou. Antes Perseu, irmão, hoje, Dirceu. E hoje eu vejo. Eu vejo que eu era machista, irmão. Que eu acreditava na superioridade do homem. Na supremacia do sexo masculino. Que o homem é a cabeça e a mulher é o corpo. Mas o olhar de Medusa me salvou!

 

Já Posídon, portador de um tridente formado de três falos, continua proferindo ideias misóginas e é morto pelas Medusas, cada uma carregando sua cabeça. O espetáculo acaba com um número musical reafirmando o valor da mulher.


Espero que volte aos palcos assim que possível já que a polêmica lá nos EUA e a contínua violência contra a mulher no Brasil justificam a permanente discussão sobre o tema. Também é o caso de levar essa situação para debate nos encontros acadêmicos sobre a recepção dos clássicos. É preciso reconhecer o inescapável movimento de resgate de figuras femininas da tradição mitológica ocidental como ícones atuais da mobilização cívica contra o patriarcado, feita pelo #MeToo, e em favor da preservação da vida, feita pelo #BlackLivesMatter. Antígonas, Medeias, Medusas estão aí para provar isso.

Renata Cazarini




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