ABERTURA DE PROCESSO: MEDEIA EXUL – ENSAIOS SOBRE O PODER
Tema: Medeia, de Eurípides
Dramaturgia: Camila Ferrazzano
Direção: Luiz Felipe Bianchini
Elenco: Ana Luiza Bergamasco Hachuy, Camila Ferrazzano, Débora Peccin e Guilherme Matzei
Assistente de direção: Jay Laurentino
Editores de vídeo: Jay Laurentino e Débora Peccin
Provocador de dramaturgia: Antônio Rogério Toscano
Provocadora de interpretação: Vanessa Bruno
Preparadora vocal e musicista: Luisa Caetano
Compositora da trilha sonora: Raquel Parras
Figurinista: Thabata Picasso
Coordenador de produção: Leonardo Birche
Realização: Teatro de Grão e Secretaria da Cultura e Economia Criativa/ProAC-Editais
Coordenação: Leonardo Birche
Duração: 45 min.
Visto em: 09 out.2020
Plataforma: YouTube (indisponível)
Uma mulher caminha em direção ao sol. Em meio à intimidade e ao cotidiano, a peça-vídeo gravada em casa e criada a partir do mito de Medeia, conta a trajetória de uma mulher que deflagra o rompimento de um pacto. Estruturada episodicamente, a pesquisa se debruça sobre as carnificinas literais e metafóricas resultantes dos jogos de poder. Como forma de compartilhamento do processo cênico, será exibido o primeiro corte da peça-audiovisual, seguido por conversa da equipe criativa da peça. Com Teatro de Grão. (Divulgação)
COMENTÁRIO
A experiência teatral na pandemia é de natureza vária, não só como espectador (ou telespectador), mas também para a gente de teatro, na produção e realização dos espetáculos, tantos deles concebidos para o palco e que acabaram na telinha do computador, celular ou TV. São raros ainda os que se apresentação como teatro digital desde sua origem (veja Medeia – Tragédia digital ao vivo).
Esta Medeia Exul surgiu como projeto de espetáculo teatral inédito, submetido e contemplado no edital ProAC de 2019 do governo paulista. Teve que se adaptar em 2020. Transformou a peça, baseada no mito de Medeia, em um audiovisual, cujo primeiro corte foi exibido em 9 de outubro, sem gravação disponível até o momento. Mais interessante é testemunhar o processo de criação, muito bem documentado neste link (retirado do ar pela produção do espetáculo), onde é possível ver trechos de vídeos que estão nesse primeiro corte a que eu assisti. O material é extenso e interessa a pesquisadores ou à gente de teatro.
O diretor Luiz Felipe Bianchini acha a necessidade de justificar – talvez nem tanto para o público, talvez mais para a fonte estatal financiadora do projeto – que se trata “fundamentalmente de um estudo”. Para quem vem observando a prática teatral neste período de excepcionalidade, vale a pena referir a linguagem utilizada no “recado do diretor”, que antecedeu a exibição do vídeo:
Nosso projeto se desenvolveu de forma online durante o ano de 2020, onde [sic] estudamos várias versões do mito e bibliografia teórica, e elaboramos um experimento em que investigamos a atuação, dramaturgia e direção em diálogo com as possibilidades e limitações deste momento histórico.
Eu me ponho a pensar se o compasso de espera impingido pela Covid-19 favorece esse trabalho de imersão no mito e nos textos de apoio para a construção da dramaturgia e do dramaturgismo. Não que isso seja inédito, só que é possível que a trupe tivesse que acelerar seus processos para levar ao palco a sua montagem, pressionada por oportunidade de agenda etc. Postergar é uma opção real na pandemia. Os trabalhos tiveram início em fevereiro, uma amostra nos foi dada agora, porém ainda como uma “abertura de processo”.
Outra coisa que me intriga é a reincidência do mito de Medeia no Brasil de hoje. Quantas vezes tenho publicado comentários de versões novas ou de adaptações para o mundo on-line de peças já encenadas! Faça uma busca lá no botão de pesquisa e vai achar várias, nem vou listá-las. Então, temos mais uma.
Acho pertinente a afirmação de Antônio Rogério Toscano, da Escola de Arte Dramática da USP, provocador da dramaturgia do espetáculo, quando diz que “o mito só é vivo quando está construindo dimensões rituais para o presente”. É isso que a retomada de Medeia parece estar realizando no país, criando dimensões rituais para inquirir, desafiar e contestar o patriarcado e o patriarcalismo, a colonização e o colonialismo, e seus efeitos sórdidos de opressão e silenciamento.
Arrisco que seja possível sintetizar a discursividade cênica e textual que decorre dessas tantas Medeias no que eu chamaria de “revanche feminista diaspórica”. Elas dizem “Basta!” – e esta é a Medeia canônica da tragédia clássica – e agora dizem mais: “Vamos mudar essa história”. Isso acontece, literalmente, por exemplo, na dramaturgia de Grace Passô, intitulada Mata teu pai, revelando o novo alvo da revanche de Medeia, que diz: “Tá na hora de rever o ângulo da história, o erro é dele” (p.35).
Medeia Exul tem a dramaturgia consistente de Camila Ferrazzano, mesmo que se veja um produto audiovisual episódico, como informa o material de divulgação. Trata-se de cenas domésticas gravadas de um espetáculo ainda em elaboração, com uns poucos fragmentos de filmes caseiros antigos que reacendem no imaginário o ambiente da família feliz, enquanto se constata que ela está em franca desintegração.
Encenado pela dramaturga, o prólogo se recusa como prólogo de uma primeira peça de uma trilogia que não terá tempo de acontecer, de um grupo de teatro que não existe e que não terá tempo de existir. A sistemática negação dá o tom de crítica à tradição, como se pode ver nestes trechos que transcrevi:
Na ofensa ao direito fálico, à dignidade fálica, é que tem início, bem ou mal, a grande literatura europeia, e é por isso que nós, os colonizados latinos e brancos, começamos nosso estudo aqui. [referindo-se à Ilíada]
(...)
Medeia é o meio pelo qual Jasão se torna Jasão. Em um dado momento, ela precisa realizar um crime inédito para que ele se lembre de que ela é Medeia. Medeia não é alguém. Medeia é um acontecimento.
A peça se estrutura originalmente em três partes, das quais apenas duas surgem nesse primeiro corte do audiovisual: Parte I – Medeia Mulher e Parte II – Medeia Acontecimento. A terceira parte será (ou seria) “O mundo por vir”.
Logo de cara, Medeia surge como grávida do segundo filho numa embarcação rumo a Corinto, ocasião de associá-la ao mar e este ao corpo da mulher: “fronteira sem bordas” que o homem suporta desde que o domestique. A Medeia de Grace Passô também usa a metáfora marítima: “E eu gozo tanto, mas tanto, que homens criam barcos pra navegar na minha água” (p.30). Essa Medeia-mar é motivo recorrente para abordar a mulher diaspórica, exilada ou escravizada como as Medeias pretas que têm sido encenadas.
Entre as referências de leitura do grupo para esse projeto estão também as escritoras e filósofas feministas Silvia Federici (Calibã e a bruxa, Ponto zero da revolução) e Isabelle Stengers (Lembra-te de que sou Medeia, No tempo das catástrofes), cujo reflexo se pode constatar no trecho original da dramaturga, que reproduzo logo abaixo, inserido na importante fala de Medeia para o Coro das mulheres de Corinto, que o grupo reproduz na versão de Mario da Gama Kury (v.237-83). A inserção:
Depois, entrando em novas leis, em novos hábitos, nós sempre nos perguntamos como é possível que, depois de tantas demonstrações noturnas de afeto, ele seja capaz de acordar no dia seguinte como se estivesse em um mundo completamente diferente. Tão distante que até mesmo uma aproximação física parece completamente impossível. De todo modo, somos nós, as mulheres, que mais sofremos com o caráter esquizofrênico das relações sexuais. Não somente porque chegamos até o fim do dia com mais trabalho e preocupações nas costas, mas também porque temos a responsabilidade de fazer o ato sexual ser prazeroso para o homem. Para nós, o sexo é, em sua maior parte, um trabalho. É um dever. A nossa sexualidade, mulheres de Corinto, está sob controle. Os nossos ventres são as fábricas dos trabalhadores do futuro. Nós somos produtos prontos a serem consumidos. Não é à toa que nenhuma mulher consegue se despir alegremente diante de um homem. Nós sabemos que estamos sendo avaliadas, que há padrões de desempenho para o grupo feminino e todos sabem desses padrões porque eles são salpicados por todos os lados aqui nos muros dessa cidade e numa ferramenta, que ainda não existe aqui em Corinto, mas que vai existir daqui a um pouquinho, chamada internet.
As atrizes fazem Medeias e Jasão é um só. Mas não sem interesse. Se a maternidade está posta como tema de debate, também está a paternidade. No discurso de Jasão, claramente. Subliminarmente, nos fragmentos de filmes caseiros, filmados em boa parte pelos pais amorosos da família idealizada. O Jasão aqui é, como disse o diretor, um campo de investigação da masculinidade e da ausência da figura paterna nos lares brasileiros. Ele diz que a questão posta é como se daria a paternidade para Jasão no diálogo com o contemporâneo: “É um lugar de pesquisa e é um lugar em que a gente tem dificuldade. A gente teve que pensar, que refletir, que refazer. Não é um lugar fácil o do masculino”. Selecionei um trecho da fala de Jasão:
Eu sou um cara que se eu pudesse conhecer cerca de 100 países, aí sim é que eu ia me sentir completamente realizado. Acho que é por isso que eu tenho bastante dificuldade com essa coisa de paternidade porque isso vai interromper meu sonho de conhecer mais de 100 países. Isso vai mexer no meu estilo de vida, vai mudar minhas prioridades. (...) Eu sei, eu sei que tem gente que acha que isso é reconfortante, essa ideia de universo, continuidade, eu não acho. Eu acho isso difícil pra caralho.
O personagem masculino da peça vai se configurando como egocêntrico, capaz de se excitar consigo mesmo, de um narcisismo que ronda a esterilidade, conforme os comentários feitos pela equipe criativa no bate-papo on-line que se seguiu à exibição. Ocorre certa identificação entre Jasão e o capitalismo, um Jasão risível, não cômico, como afirmou a atriz e diretora Vanessa Bruno, provocadora de interpretação. Rindo de Jasão, ri-se do capital.
(Renata Cazarini)
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