CORAÇÃO-TAMBOR (visoleitura dramática)




Tema: Medeia em diálogo com tradição cultural do Amapá

Dramaturgia: Emerson de Paula

Direção da visoleitura: Emerson de Paula

Interpretação: Nelma Silva

Duração: 8 min.

Assistido em: 28 set.2020


Divulgação: Baseado no mito de Medeia em diálogo com a dançadeira do Marabaixo, uma das maiores manifestações culturais do Amapá, norte do país.


COMENTÁRIO

A leitura dramática em formato de audiovisual, de autoria e direção do professor da Universidade Federal do Amapá (Unifap) Emerson de Paula, foi apresentada apenas uma vez e – até o momento – não está disponível na web. O texto, bastante breve, faz uma inédita associação entre o mito de Medeia e uma tradição afrocultural do Amapá, a dança Marabaixo, reconhecida como patrimônio cultural do Brasil em 2018. 


A dança de roda acontece em torno de tambores, com os pés se arrastando no chão, evocando os pés agrilhoados dos escravos africanos nos porões dos navio. Sobre essa tradição, vale ver este curto vídeo.  


Essa Medeia negra vem fortalecer a leitura recorrente do mito grego no Brasil atual, salientando a faceta da princesa como mulher estrangeira, deslocada de sua terra de origem, diaspórica. É o que se testemunha nas peças Medea Mina Jeje, de Rudnei Borges dos Santos, e Medeia Negra, de Márcia Limma, por exemplo. Não muito distante dessa abordagem fica a peça Mata teu pai, de Grace Passô, dramaturga negra que escreveu a Medeia para a atuação de Debora Lamm, atriz branca, como uma estrangeira que se solidariza com outras mulheres na mesma condição de deslocamento.


Documentário do Sesc sobre Marabaixo

A cena de Coração-tambor é uma fala-denúncia de Medeia, que usa o figurino típico das dançadeiras de Marabaixo, uma longa saia rodada. A fala vem intercalada de tambores e invoca Oxóssi, orixá da caça e da mata. Divulgo aqui dois trechos ilustrativos:


Ai de mim! Arrancada de minha terra, escolhi este lugar para morar e habitar. Aqui me refiz, podendo ter de volta uma vida ligada a meus ancestrais mesmo não estando em minha terra natal. Fui jogada mar abaixo, chegando aqui. Agora querem me expulsar deste lugar em que fiz minha morada, dizendo que não posso tocar em meu coração-tambor a música que vibra em meu pé. Esta terra fala comigo. Eu danço a minha fé. Eu canto minha fé. Sou negra e agora sou índia. Sou livre. 





Não é injusto que eu seja julgada por ser estrangeira? Já sofri demais sendo arrancada de país. Agora querem me expulsar desta terra, que acabou se tornando minha. Querem novamente jogar meu corpo mar abaixo. Meu corpo aqui fez morada. Meu coração-tambor vibra com essas folhas, com esse vento. Não posso ser jogada ao destino, sem rumo. Não posso ficar sem chão pra plantar meu pé-raiz. Ai de mim! 


O texto foi desenvolvido durante o curso à distância “Dramaturgia negra: palavra viva”, promovido pelo Itaú Cultural e ministrado pela dramaturga Dione Carlos, autora de Black Brecht – e se Brecht fosse negro?, montagem que eu vi e cheguei a comentar aqui.


Talvez surja a dúvida sobre por que um curso de dramaturgia negra retomaria peças da Antiguidade clássica. É o resultado de um exercício de leitura de textos de Viviane Juguero, autora de Antígona BR e de Ori Oresteia, montadas pelo grupo Caixa Preta, do Rio Grande do Sul, sob a direção de Jessé Oliveira, em 2008 e 2015, respectivamente. O exercício propunha que fosse criada uma cena curta a partir de um personagem ou narrativa de alguma peça grega, trágica ou cômica, mesclada a personagens ou narrativas brasileiras.


Emerson viu a possibilidade de colocar em diálogo Medeia e o Marabaixo, e fez o que chamou de “visoleitura dramática” da cena, que talvez seja ampliada e venha a ser montada em 2021, diz o autor, que pesquisa a história do teatro negro no Brasil.


Outras cenas que retomam peças gregas e que foram selecionadas para o Palco Virtual do Itaú Cultural foram Prometeu BR, de Junior Nascimento, e A greve das amas de leite, de Jefferson Fernandes. Na primeira, o autor se coloca como um Prometeu, mas sofrendo as mazelas da violência racial contra o corpo negro. Na segunda, uma Lisístrata mestiça, talvez fruto de estupro, segundo o autor, lidera uma greve de escravas na Bahia do século XIX, como revela o título, incorporando elementos do maracatu, dança do folclore pernambucano.


A dramaturga Fernanda Onisajé, que comentou as cenas selecionadas, argumenta que é relevante persistir no processo de “empretecer os clássicos”, acessando seus códigos conhecidos e hackeando o sistema de forma a ampliar a voz da dramaturgia negra. Ela diz: “A catarse negra não é a catarse grega. Não gera nem terror nem piedade. Gera atitude”. Sem dúvida, é crescente a mobilização da comunidade teatral em torno das montagens feitas pelos vários grupos negros. Axé!

(Renata Cazarini)



Comentários