“E SE BRECHT FOSSE NEGRO?” [O julgamento de Lucullus]

Foto: Cristina Maranhão

Tema: biografia do general romano Lúcio Licínio Luculo (Plutarco)
Dramaturgia: Dione Carlos a partir de texto de Bertolt Brecht
Intervenção dramatúrgica: Coletivo Legítima Defesa
Direção: Eugênio Lima
Elenco: Eugênio Lima, Walter Balthazar, Luz Ribeiro, Jhonas Araújo, Palomaris Mathias, Tatiana Rodrigues Ribeiro, Fernando Lufer, Luiz Felipe Lucas, Luan Charles, Marcial Macome e Gilberto Costa.
Direção musical: Eugênio Lima e Neo Muyanga
Videodocumentário: Ana Júlia Travia
Temporada: 18.04 a 05.05.19
Local: Sesc Pompeia, SP
Duração: 90 min
Assistido em: 18.04.19

Sinopse
Livremente inspirada na peça “O Julgamento de Lucullus”, de Bertold Brecht. Perante o Supremo Tribunal do Reino das Sombras apresenta-se Lucullus Brasilis, o civilizador general, que precisa prestar contas da sua existência na terra para saber se é digno de adentrar no Reino dos Bem-Aventurados.

Sob a presidência do juiz dos Mortos, cinco jurados participam do julgamento: um professor, uma peixeira, um coveiro, uma ama de leite e um não-nascido. Estão sentados em cadeiras altas, sem mãos para segurar nem bocas para comer, e os olhos há muito apagados. Incorruptíveis. (Divulgação)

Nota bene
O coletivo negro Legítima Defesa surgiu em 2015, a partir da performance "Em Legítima Defesa", apresentada na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) de 2016. Tem como proposta ações poéticopolíticas que constroem um diálogo polifônico acerca da reflexão e representação da negritude. Em 2017, estreou o espetáculo “A missão em fragmentos – 12 cenas de descolonização em legítima defesa” na programação da MITsp.

O projeto atual, “Black Brecht – e se Brecht fosse negro?”, foi contemplado em 2018 com o Prêmio Zé Renato de Apoio à Produção e Desenvolvimento da Atividade Teatral para a Cidade de São Paulo (R$ 257 mil). O nome “Legítima Defesa” foi adotado em memória dos intelectuais haitianos, senegaleses e antilhanos que criaram, em 1934, em Paris, a revista “La Légitime Défense”.

“Nas colônias, a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura.
A causa é consequência: o indivíduo é rico porque é branco, é branco porque é rico”.
Frantz Fanon, “Os condenados da terra” (1961)

Comentário
A montagem, que ocupa metade do teatro do Sesc Pompeia, é um espetáculo-intervenção como o coletivo Legítima Defesa já havia feito no projeto anterior. Depois de ter adaptado a “A missão” (1979), do dramaturgo alemão Heiner Müller (1929-1995), o coletivo dedicou-se à pesquisa em torno do texto “O julgamento de Lucullus” (1939), do também alemão Bertolt Brecht (1898-1956).

A Missão em fragmentos

Entenda-se que o teatro de intervenção é – defende o coletivo – um ato de guerrilha estética. Não se pode esperar durante essa ação politicopoética manter uma posição passiva, cômoda, confortável, na poltrona do teatro. Não. Você é instado a se engajar. Pode aderir. Talvez repudiar. Mas nada em demasia. É um espetáculo, como se propõe o grupo de artistas (atores e músicos), para formar uma mentalidade da “re-existência negrx”.

Black Brecht

A pesquisa do coletivo teve início em novembro de 2017 com o objetivo de elaborar uma apresentação chamada “O julgamento do homem colonial pelos condenados da terra”, evocando o livro “Os condenados da terra”, de Frantz Fanon. No processo de preparação, a pergunta a responder era: “Seria possível construir um espetáculo sob uma perspectiva afro-brasileira diaspórica da obra e dos procedimentos de Brecht?” [conforme consta do programa da peça à página 9].  

Sem ter podido participar das sessões abertas ao público durante o processo, posso arriscar uma confrontação com o texto de partida, o de Brecht, e a resultante brasileira no palco, mas ainda sem uma partitura teatral de apoio em mãos.

Antes, porém, vale o comentário sobre Lucullus (grafia em latim, com pronúncia paroxítona), um general do final da República romana (século I a.C), biografado por Plutarco nas vidas paralelas de homens ilustres, sempre um grego e um romano. Lucullus venceu muitas guerras, angariou enorme espólio e viveu luxuosamente até o fim. O texto em espanhol pode ser baixado aqui.

Desse nome próprio deriva até um adjetivo, como registra o dicionário Houaiss:

luculiano (1885 GJunVPE)
adjetivo
1 relativo a ou próprio de Lúculo, brilhante orador, político e general romano (c106 a.C. -c57 a.C.); lucúleo [Lúculo tornou-se célebre por sempre sair dos combates com saques e exigências proveitosas; seu nome ficou historicamente associado à ideia de luxo e ostentação.]
2 p.ext. que tem magnificiência, esplendor, opulência; grandioso
sinônimos
luculento, lucúleo

A dramaturgia do projeto Black Brecht manteve o personagem, mas o deslocou para o Brasil colonial, rebatizado de Lucullus Brasilis, “o civilizador general”, epíteto repetido incansavelmente. A trama e uma parte expressiva do texto brechtiano são preservadas na adaptação brasileira, e essa foi uma opção feliz do coletivo, pois a peça – originalmente radiofônica e depois transformada em ópera – tem estrutura bem atual, de polifonia discursiva. Uma versão em inglês pode ser baixada aqui. 

O texto alemão, escrito no ano em que explode a Segunda Guerra Mundial, submete a julgamento post mortem um general aclamado pelo povo, mas que não encontra no Além nenhum aliado de renome que possa endossar terem resultado em algo bom os feitos de que se gaba. O que está em causa é se caberá ao arrogante militar a passagem para os Campos Elísios ou para o Hades. Sua existência foi útil à humanidade?

A peça alemã de 1939, encomendada por uma rádio sueca, mas transmitida pela primeira vez na Suíça em 12 de maio de 1940, se encerra com o tribunal dos mortos retirando-se para deliberação. Opta, portanto, por deixar em aberto o veredito, embora tudo indique que haveria a condenação. Esse texto é considerado um ataque direto ao militarismo nazista por uns e uma mensagem pacifista por outros, até porque alguns personagens, que classificaríamos hoje de “subalternos”, são as únicas testemunhas favoráveis ao general.

Uma década depois, anos após a derrota alemã na guerra, Brecht e o compositor Paul Dessau (1894-1979) preparam uma versão operística da obra, definindo-se agora abertamente pela condenação do general. A primeira apresentação integral, para convidados, acontece em 17 de março de 1951, na Ópera Estatal de Berlim Oriental.

Mas, entre outros temas, abriu-se a controvérsia quanto à “condenação” indiscriminada da ação militar, sendo que o governo da Alemanha Oriental admitiria a “condenação” da guerra de agressão, não da guerra de defesa. A ópera passou por vários ajustes que geraram polêmica, tendo sua nova estreia, aberta ao público, acontecido em 12 de outubro de 1951, no mesmo espaço, sob o título de “A condenação de Lucullus” (“Die Verurteilung des Lukullus”). É possível ler aqui uma boa crítica e relato desses fatos (em inglês).

O espetáculo-intervenção do Legítima Defesa dá o veredito e condena – e não se poderia esperar outra coisa. A inserção na trama tanto do Brasil colonial como do atual Brasil ainda colonizado insere também o espectador, não importa a cor. Num dos pontos altos da montagem, os membros do tribunal, ecoando nomes de testemunhas convocadas por Lucullus Brasilis em sua defesa, buscam na plateia por esses famosos da história oficial do Brasil, sem sucesso. 

Esse dispositivo, que ocorre apenas uma vez no texto de Brecht de 1939, é multiplicado agora, mas não cansa e não aborrece. Faz pensar. Outro momento interessante é quando a encenação é interrompida para a exibição de um videodocumentário de cinco minutos sobre o Brasil, repleto de estatísticas e imagens atuais.

Todo esse didatismo evoca a vertente das peças de aprendizagem do dramaturgo alemão, numa tentativa de responder àquela pergunta inicial: “Seria possível construir um espetáculo sob uma perspectiva afro-brasileira diaspórica da obra e dos procedimentos de Brecht?” A cada espectador, a sua própria resposta. 

Como contraponto, fica o alerta sobre o volume de informação visual, musical, numérica, olfativa da peça. Não é ruim. É só um desafio. Mas creio que seja justamente essa a intenção.
(Renata Cazarini)

Eugênio Lima

Ouça a entrevista do diretor DJ Eugênio Lima à Rádio Cultura FM sobre a montagem no Sesc Pompeia.