MULHERES TECENDO HISTÓRIAS: AULA 4 [30.03.19] in absentia
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Marcelino Freire
Como é que vai ser escrever na ausência?
Certamente lacunar. E me perdoem o óbvio.
Como estive ausente da última aula do nosso grupo “Mulheres tecendo histórias”, pensei em nada escrever. Mas pensei de novo, e achei que era a preguiça que me vencia. Escrevo.
No mínimo, devo apresentar a tarefa que me cabia e que não foi entregue in absentia. Sou culpada, não nego. Aceito o julgamento, mas já vou me redimindo com o verbete do Houaiss:
in absentia pronúncia: in absentĭa; língua: latim
locução adverbial JUR
sem a presença (do réu) [diz-se da realização de julgamento]
Essa expressão em latim me interessa ainda mais. É que me ocorre que eu também me ausentara das memórias sobre minha avó, sobre isso que eu tinha que tratar a pedido do mestre-poeta Marcelino Freire. O que me ocorre é que não são as histórias que me escapam da memória, as lembranças que fogem: sou eu é que me ausento delas. Está presente ali no meu ser tudo o que é memorável, eu é que me deixo ausentar. Nesse sentido, por essa salvação da memorabilia, essa tarefa não foi um exercício de escrita, mas de preenchimento da ausência.
memorabilia pronúncia: memorabilĭa; língua: latim
substantivo neutro plural
1 fatos ou coisas dignos de memória
2 fatos ou coisas que suscitam memórias, lembranças
Resolvi dar nome ao que seriam apenas duas listas. Só que acontece que viraram algo que pode ser que seja, talvez, quem sabe, um poema.
ASSUMPTA
Minha avó gostava de coisa esquisita.
Gostava da cor marrom e da verde,
Não de azul e vermelho como
Gosta toda a gente.
Gostava de pitar cachimbo,
Embora fumasse cigarro como
Fuma toda a gente.
Gostava de romance espírita,
E tinha preto-velho, buda e crucifixo como
– eu acho – toda a gente tem.
Gostava de TV também,
Só que de um jeito diferente:
Gostava de se ver na TV.
Chance que ela tinha,
Mas que rara gente tem.
Minha avó gostava de ouvir rádio
No banheiro.
Coisa esquisita.
Ia até ao estrangeiro.
Dançou tango de Gardel na Argentina,
Rara coisa naqueles dias.
Gostava da minha mãe,
Que gostava da cor roxa.
Coisa muito esquisita.
Minha avó só não gostava da fome,
Que ela nunca sentiu,
Que ela sempre sofreu.
Sonho de horror
Da guerra narrada
Pela mãe da mãe da minha mãe.
Minha avó empilhava latas de alimento
Pela manhã.
Latas e latas de alimentos.
Prateleiras de latas de alimentos.
Estantes plenas de latas de alimentos.
Coisa natural.
Sobre a minha avó na TV, veja aqui. Falta muito, tem coisa errada, mas a foto é dela mesma.
No próximo sábado, nossa vivência poética promete. Vai ter visita do grupo “Tear e Poesia”. A tarefa agora é escrever a cada dia algo inusitado vivido ou sentido. Será um diário de 15 dias.
Como teve mais gente que faltou à aula, foi pelo Whatsapp que a gente se atualizou.