HORÁCIO, de Heiner Müller




Mito: batalha entre Horácios, por Roma, e Curiácios, por Alba Longa
Tradução: Ingrid Koudela
Adaptação e concepção: Celso Frateschi
Temporada: Primeira Mostra de Teatro Estudantil do TUSP – 08.03-07.04.19
Local: Teatro da USP – Rua Maria Antônia
Direção: Márcio Aurélio
Elenco: Celso Frateschi
Assistido em: 05.04.19, única apresentação
Duração: 30 min

Exemplo pela metade não é exemplo
 Aquilo que não é feito por inteiro até o fim verdadeiro
 Volta para o Nada nas rédeas do tempo em passo de caranguejo”
(Heiner Müller)

Sinopse
Roma está em guerra contra Alba. Ao mesmo tempo, ambas estão ameaçadas pelos etruscos. A fim de resguardarem seus exércitos contra o inimigo em comum, os chefes decidem que um Horácio lutará por Roma e um Curiácio lutará por Alba. A irmã do Horácio escolhido era noiva do Curiácio. Mesmo assim, decidem lutar. O Horácio mata o Curiácio e torna a Roma coberto de glórias. A irmã ignora a vitória do irmão e de Roma e chora pelo noivo. Horácio, indignado, usa da mesma espada glorificada pelos seus para matar a noiva do inimigo, sua irmã. Os romanos cessam os festejos, tiram-lhe a espada e organizam-se para tentar entender e julgar o Horácio, divididos entre considerá-lo um herói ou um assassino. (Divulgação)

Nota bene
O solo de Celso Frateschi está no seu repertório há mais de 30 anos. Foi encenado pela primeira vez no Sesc Pompeia (SP), em 1988, integrando o espetáculo ERAS, que incluía “Filoctetes” e “Mauser”, ambos textos também de Heiner Müller, compondo uma trilogia experimental e polemizando com as peças de aprendizagem de Bertolt Brecht.

EXCERTO DE “HORÁCIO” apresentado no TUSP

O Horácio se abaixou
Para apanhar a sua espada aquela cheia de sangue do vencedor
Só que os lictores impediram com o chicote e o machado
E o pai do Horácio também apanhou a sua espada
E ia erguer com a esquerda aquela cheia de sangue do vencedor
Que era um assassino
Mas os lictores também o impediram com o chicote e o machado
E os vigias foram reforçados nos quatro portões da cidade
E só então prosseguiu o julgamento
À espera do inimigo
E aquele que carregava o louro disse
Seu mérito apaga sua culpa
E aquele que carregava o machado disse
Sua culpa apaga seu mérito
Aquele que carregava o louro disse
O vencedor deve ser executado?
Aquele que carregava o machado disse
O assassino deve ser honrado?
Aquele que carregava o louro disse
Se o assassino for executado
Será executado o vencedor
Aquele que carregava o machado disse
Se o vencedor for honrado
Será honrado o assassino
E o povo olhou para o autor único e indivisível
De atos tão diversos e silenciou
E aquele que carregava o louro e aquele que carregava
O machado perguntaram
Se um não pode ser feito sem o outro, que o torna desfeito
Porque o vencedor/assassino e o assassino/vencedor
São um homem só indivisível
Então não devemos fazer nenhum dos dois
Para que haja um vencedor/assassino
Uma vitória/assassinato
E o povo respondeu a uma só voz
Mas o pai do Horácio silenciou
Ali está o vencedor Seu nome Horácio
Ali está o assassino Seu nome Horácio
Há muitos homens num só homem
Um deles venceu por Roma o duelo
Outro matou a sua irmã
Sem necessidade A cada um o seu
Ao vencedor o louro Ao assassino o machado




Comentário
O caráter narrativo do solo de Frateschi é reforçado pelo uso da peculiar máscara, confeccionada em couro, que faz o ator suar, como se vê ao final da fala de 30 minutos. Máscara sem expressão, que impõe a neutralidade, como esclareceu o ator na conversa com o público de 50 pessoas no TUSP. Máscara que objetiva o distanciamento do épico, não a emotividade do dramático.

Assim, o impacto advém das palavras e da sua dicção pelo narrador. Só havia um fio de olhos quando eu buscava a expressão do olhar de Frateschi nos momentos mais críticos do texto. Ali importava quando silenciar e quando falar. O teatro maravilhoso decorre dos movimentos econômicos e efetivos sobre um simples tablado de pequenas dimensões, ligeiramente elevado, preenchendo o vazio do “U” em que se distribui a plateia. Além da máscara, uma moeda.

A adequação do texto ao contexto brasileiro atual foi comentada por alguns dos espectadores. O excerto acima, creio, fala por si. Adequa-se a mais de um credo político. É interessante refletir sobre a opção de Heiner Müller, ao escrever “Horácio” em 1968: ele simplesmente descarta a lenda dos três irmãos gêmeos de um lado e de outro do conflito, para centrar na disputa de um contra um, o que incrementa a verossimilhança da narrativa.

O dramaturgo alemão condena o Horácio, sendo que a lenda romana o perdoa. Na “História de Roma”, de Tito Lívio, o apelo do pai dos Horácios – após a perda de seus filhos e filha, exceto aquele herói e assassino num só – é ouvido pelo povo. Absolvido, Horácio é submetido somente a um ato de purificação.

Bertolt Brecht havia escrito, em 1934, “Os Horácios e os Curiácios”, uma peça de aprendizagem em torno dos estratagemas de combate entre os dois inimigos, que não adentra o episódio de caráter trágico da morte da irmã e julgamento do herói-assassino.  Enquanto o texto de Brecht inclui coros e diálogos, o de Müller é um “bife” (rhesis) para uma só voz.

Ainda assim, o texto de Müller ecoa o de Brecht quando cria o verso “Há muitos homens num só homem”, retomando “Há muitas coisas numa só coisa”, que ocorre repetidas vezes. Na avaliação de Jonathan Kalb, autor de “Theater of Heiner Müller” (2001, p.31), “Horácio” é mais sofisticada que a maioria das peças de aprendizagem de Brecht por causa da estrutura do argumento e do ritmo poético.

Na montagem que Müller realizou em 1988 no Deutsches Theater, em Berlim, o texto era gravado pelo próprio autor com voz monótona, segundo Kalb (p.40), e encenado pela atriz Johanna Schall e Ulrich Mühe, em movimentos que simulavam marionetes, automatizados.

(Renata Cazarini)

Numa livre adaptação do texto de Brecht, um experimento cênico está sendo realizado no Museu do Ipiranga, em São Paulo, com entrada gratuita. "Morte e Dependência na Terra do Pau Brasil", com direção de Cibele Forjaz. Veja detalhes aqui.

Veja também nosso post anterior sobre "Horácio", de Celso Frateschi.