ARISTÓFANES NA SALA DE JANTAR [COMENTÁRIO]


Adriane da Silva Duarte*


O #EmCasaComSesc, excelente iniciativa do Sesc de transferir suas atividades culturais do presencial para o virtual durante a pandemia, exibiu recentemente As Mulheres e Aristófanes (27/09/2020), espetáculo encenado por Esther Góes e Ariel Borghi, e dirigido por Marcio Aurélio. Como a proposta é apresentar “trabalhos cênicos diretamente da casa dos artistas”, note-se o cuidado de não caracterizar esse formato como “teatro”. É algo feito no calor do isolamento social, com os recursos disponíveis e as adaptações necessárias – não é o caso aqui, mas a maioria dos trabalhos apresentados não foi criada para o projeto: estrearam de forma tradicional, sendo adaptados para o virtual, alguns de forma bastante sofisticada.


As Mulheres e Aristófanes, como revela Ana Maria César Pompeu em texto publicado aqui no Palco Clássico, faz parte de exercícios exploratórios para a montagem de Tesmoforiantes, de Aristófanes, que atriz e diretor planejam para o próximo ano. Essa iniciativa deve, desde já ser saudada, já que é rara a presença da comédia aristofânica nos palcos e, mais ainda, de uma comédia tão envolvida com o cenário dramático na Atenas clássica como essa, em que a metaliteratura é responsável por grande parte do efeito cômico. Também vale elogiar a escolha de uma das recentes traduções da peça – são três: A. S. Duarte (2005), Trajano Vieira (2011), Ana Maria César Pompeu (2015) – em vez de recorrer às populares, mas já desgastadas, sobretudo no nível da linguagem, de Mário da Gama Kury.


De volta a As Mulheres e Aristófanes, a despeito da louvável iniciativa de colocar Aristófanes em pauta, julgo que o resultado ficou muito aquém do esperado. O que se viu não estava maduro para ser apresentado, tanto no que respeita a concepção do trabalho, quanto do cenário e da trilha musical. A minha sensação é a de um amadorismo que beira o constrangedor. 


A começar da ideia de fazer uma colagem de falas descontextualizadas de três comédias de Aristófanes (Lisístrata, Tesmoforiantes e Assembleia de Mulheres) que versam sobre o universo feminino. Acho que faz todo o sentido estudar essas comédias como uma preparação para a montagem de uma delas, mas não juntá-las numa enfiada sem quaisquer marcas identificadoras e dar a público o resultado. Para quem está familiarizado com os textos e reconhece personagens e situações fica  mal-ajambrada a solução, mas para quem as desconhece, suponho, fica incompreensível – especialmente as falas de Ariel Borghi nas Tesmoforiantes, em que um personagem masculino se passa por mulher para convencer as atenienses a perdoar as ofensas de Eurípides. A comédia aristofânica precisa de contexto e cada heroína cômica tem traços característicos, assim a colagem proposta não me pareceu funcionar.


Creio igualmente que se levou muito a sério a proposta de trazer o espetáculo para casa dos artistas – e quero aqui deixar claro que é possível fazer grande teatro dentro do lar: só para citar um caso, a montagem de Fim de Jogo, de Samuel Beckett, que Renato Borghi e Elcio Nogueira fizeram na sala de seu apartamento, com público, pré-pandemia, e replicaram em julho, agora para as câmeras, em projeto on-line do Itaú Cultural. Ou seja, a sala de jantar pode ser ótimo cenário para a comédia de Aristófanes, mas objetos têm que ser ressignificados, assumindo novas configurações de acordo com o drama em curso. Não me parece que isso tenha acontecido. Em diversos momentos me peguei olhando para detalhes, como o aparador cheio de porta-retratos, e me perguntando o que aquilo agregava a isso. Nesse sentido, plantas e móveis, com exceção da mesa e das cadeiras, contribuíam para distração e, não, para concentração do espectador. O mesmo vale para as marcações cênicas. Em vários momentos se tem a impressão de que os atores vão esbarrar um no outro, em outros momentos, os olhares e toques soam forçados. O espaço, que era familiar a ambos, pois são mãe e filho e estão em casa, fica, de repente hostil.


Por fim, uma nota para a música. A apresentação começa com Borghi arranhando uma guitarra, descalço, sentado no tapete. O que isso quer dizer? Como dialoga com o texto de Lisístrata que se segue? Mas, ainda pior, é a trilha sonora jazzística que, sinceramente, parece vazar por acidente. Simplesmente não orna.


As Mulheres e Aristófanes, para mim, foi um equívoco, que, se se justifica um pouco, é pela oportunidade de ver Esther Góes dar vida a algumas dessas personagens, grande atriz que ela é – mesmo quando nada funciona, ainda há bons momentos dela. Entende-se como um ensaio exploratório para a peça que virá, mas não como espetáculo. 


Em outra de suas comédias, Rãs, Aristófanes imagina Dioniso, o deus da comédia, indignado com a tentativa de seu escravo de usar mais uma vez uma piada batida. Ele desabafa: “quando ouço piadas sem graça, saio do teatro um ano mais velho!” No caso de As Mulheres e Aristófanes, é isso o que acontece. 




*Adriane da Silva Duarte é livre-docente da USP, atuando na área de Língua e Literatura Grega tanto na graduação como na pós-graduação. É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. As principais linhas de sua atividade como pesquisadora são o teatro grego e cenas de reconhecimento, a comédia grega antiga, a produção de Aristófanes, dedicando-se atualmente à tradução e estudo do romance grego antigo. Coordena, com a Profa. Dra. Zélia de Almeida Cardoso, o Grupo de Pesquisa “Estudos sobre o Teatro Antigo”, fundado em 2002. É graduada em Ciências Sociais pela USP, com mestrado e doutorado em Letras Clássicas. Publicou a tradução de “As Aves” (Hucitec, 2000) e “Duas Comédias: Lisístrata e As tesmoforiantes” (Martins Fontes, 2005), entre outras obras Fez parte da equipe de redatores do Dicionário Grego-Português (Ateliê, 2006-2010).


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