UMA MEDEIA E OUTRA MEDEA


Agora temos mais dois audiovisuais para testar a resiliência do mito de Medeia, a princesa bárbara, a vingativa, a filicida – que eu prefiro ver, junto com uma corrente expressiva da dramaturgia mais engajada, como símbolo atual de resistência à opressão do patriarcado.


Os autores dos textos que servem de base para estas duas versões não estavam traduzindo a versão canônica de Medeia, a de Eurípides (século V a.C.), nem mesmo a atualizavam. Criaram as próprias Medeias. O alemão Heiner Müller (1929-1995) relata que experiências matrimoniais frustradas estão no seu texto (Guerra sem batalha, 1997, p.232-3). A brasileira Consuelo de Castro (1946-2016) descaracteriza o perfil filicida de Medeia, entre outros ineditismos.


Como latinista e pesquisadora de Sêneca, pode parecer tendenciosa minha avaliação, mas não: Müller e Consuelo vão à fonte latina. Müller admite que Sêneca, mais do que outros, é autor de referência para sua peça (idem, ibidem). Consuelo abre a sua versão com estrutura muito similar, evocativa mesmo, da Medeia de Sêneca, além de eliminar a personagem do rei Egeu de Atenas, ausente também da tragédia latina.


Com expurgos e acréscimos... 

... “Medeia é imortal, eterna, infinita, inextinguível” – segundo Jasão, nas palavras de Consuelo.


MEDEIA POR CONSUELO DE CASTRO

Audiovisual em preto e branco

Texto: Memórias do mar aberto (1997)

Dramaturgia: Consuelo de Castro

Direção: Gabriel Fernandes e Bete Coelho 

Elenco: Bete Coelho (Medeia), Flavio Rocha (Jasão), Roberto Audio (Creonte), Michele Matalon (Ama), Luiza Curvo (Glauce), Matheus Campos (Absirto).

Realização: Cia. BR116

Estreia: 7 fev.2021 (domingo)

Temporada: até 12 mar.2021 com sessões fixas

Sessões de 4ª a sábado às 20h00; domingo, às 18h00

Duração: 60 min.

Canal da Cia BR116 no YouTube

Assistido em 7 fev.2021

 

 

Em 1997, Consuelo de Castro escreveu sua versão do famoso mito grego, intitulada Memórias do Mar Aberto – Medeia conta a sua história. A narrativa de Consuelo é contundente, visceral, atual e não maniqueísta. Consuelo salienta também a traição política, além da amorosa, sofrida por Medeia. Deusa, guerreira, amante e mãe, a voz de Medeia se confunde com a da autora.  (divulgação)

 

 

Medeia e o fantasma de Absirto)

 

Comentário

Preferem chamar de teatrofilme, mas eu vejo como filme só. Em preto e branco, coisa linda. E tem algo de Lars Von Trier e sua Medeia, que começa na água, lúgubre. Preste atenção na sonoplastia. A plástica do filme eleva o texto, porque só ouvindo, sem ver as imagens, fica uma radionovela.


Não tenho conhecimento da obra de Consuelo de Castro, nunca li a peça que serve de base para a filmagem da Cia. BR116. Mas, disse Bete Coelho, protagonista e codiretora, pouco foi cortado do texto de partida. Se for mesmo assim, posso seguir com o comentário. Faço a ressalva de que só vi o vídeo uma vez, na estreia, no domingo. Quando a gente vê algo de novo, às vezes muda de ideia. Às vezes.


A estrutura inicial é como a da peça de Sêneca, com a fala de abertura de Medeia, seguida de um diálogo áspero entre ela e sua Ama. A ousadia do filme é que o casal Jasão e Glauce (Creúsa na versão latina) faz sexo publicamente, consumando o casamento que está para ser oficializado no dia seguinte. Na peça de Sêneca, o coro canta um epitalâmio para celebrar as bodas.


A Medeia de Sêneca se reafirma como detentora das forças naturais que a configuram, embora deseje morrer:


MEDEIA: Resta-me Medeia: aqui vês mar e terras, / ferro e fogo, deuses e raios. (v.166-7)

AMA: Morrerás. MEDEIA: É o que desejo. AMA: Foge! MEDEIA: Arrependi-me da fuga. (v.170)


Esta Medeia, de agora, só quer a morte, mas essa é uma impossibilidade, pois ela é imortal:


MEDEIA: Eu não sou mais rainha, eu não sou mais nada. Não quero fugir, nem ficar, eu só quero morrer. (...) Eu não tenho mais ninguém. AMA: Tens Medeia. MEDEIA: Um nome, nada mais. (...) Se ficar é suicídio, se fugir é covardia, resta outra saída? AMA: Resta. Resta arregimentar um exército, tomar o poder e matar os reis.


Sentado, Creonte. Em pé, Jasão


Esse elemento de uma rebelião incentivada pela Ama, ineditismo da dramaturga, é situado num cenário de peste, estranho ao mito de Medeia e presente na versão canônica de Édipo Rei. A versão brasileira alude ainda a Téspis, o primeiro dos atores (século VI a.C.), aliciado pela maga bárbara para o movimento rebelde.


CREONTE: Juntou o lixo com a porcaria, a mentira com o fingimento. Ah, se ator já é gente que não presta, imagina em conluio com a feitiçaria.


O que me intriga é o Jasão desta peça. Ele fala muito, podendo, assim, revelar-se um personagem mais complexo: sai em defesa de Medeia frente a Creonte, se arvora um defensor da democracia e diz que Medeia só prega tolices do tipo que deuses e homens são iguais. Ao mesmo tempo que se diz grato a ela, a reduz tanto quanto pode.


JASÃO: Você é apenas uma mulher que seguiu o seu homem. Nada além disso. E nada antes disso também. Você está doente de ciúmes. Não queira transformar uma mágoa doméstica numa proeza épica.


Mas de tudo isso, o que surpreende, é pôr uma Medeia que diz que seu plano “falhou no mais doloroso dos detalhes”.


(ATENÇÃO! SPOILER!)

Os filhos morrem e a culpa é dela, mas sem a intenção. Sério?! Uma Medeia que fracassa? Até onde vai a elasticidade desse mito? É claro que, tal como Eurípides introduziu o filicídio, Consuelo pode expurgá-lo com certa classe. É isso que queremos? Eu não. A Bete Coelho, sim. E nessa produção isso parece ter sido determinante, como comentou a atriz no bate-papo após a estreia.  


A Consuelo de Castro, e eu gosto da Consuelo de Castro justamente por isso, porque os filhos são mortos acidentalmente. Ela queima o palácio, o poder, Creonte, inclusive, por fim, o Jasão, e, enfim, toda a cidade e, acidentalmente, ela é vítima do próprio veneno. A Consuelo faz isso e eu sou bem Consuelo, porque eu nunca tinha feito Medeia antes justamente por causa disso. (...) Tem o clichê da Medeia, aquela que mata os filhos, e a Consuelo subverte isso e traz uma Medeia muito mais intensa, muito mais incrível, muito mais de acordo, sei lá, dialoga mais com os nossos sentimentos, pelo menos, femininos. (Bete Coelho)


Veja o bate-papo do elenco neste link.

Pra dar um desfecho, digo que o filme merece ser visto. Afinal, quem filmaria Medeia hoje, né?

Renata Cazarini


MEDEA MATÉRIA: ENSAIO

Audiovisual em cores

Texto: Medeamaterial (1982)

Dramaturgia: Heiner Müller

Direção: Aury Porto e Yghor Boy

Atuação: Aury Porto

Estreia: 8 fev.2021

Duração: 24 min.

Disponível no canal da Biblioteca Mario de Andrade no YouTube

Assistido em 8 fev.2021


Nele, juntam-se a situação de isolamento social em que nos encontramos em 2020 [sic] e algumas relações entre o mito de Medeia e o nosso tempo. A montagem, realizada pela mundana companhia com estreia no Sesc Pinheiros em janeiro de 2019, conta com a atuação de Aury Porto e a direção de Yghor Boy e Aury Porto. Esta gravação é parte da Ação Cultural da Biblioteca Mário de Andrade. (divulgação)




Comentário

Este audiovisual é um registro a posteriori do que teria sido o ensaio para a performance de Aury Porto como Medeia na montagem pela mundana companhia da peça Medeamaterial, do alemão Heiner Müller, ocorrida no Sesc Pinheiros, em São Paulo, em janeiro de 2019. Veja meu post da época.


Como informa o vídeo logo de cara, a produção é de julho de 2020, em pleno isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19, gravada, portanto, em ambiente fechado (supostamente, o apartamento do ator e diretor). A edição mescla imagens da apresentação presencial, dando uma boa ideia do que foi uma parte do espetáculo, a parte intermediária do tríptico.


A justificativa para a existência deste audiovisual neste momento vem associada pelo ator e diretor à contabilidade das vítimas fatais do novo coronavírus: “Vendo as mortes que a gente inventa, fica mais fácil de pensar as mortes cotidianas, reais, dos corpos”.


Mas a gente sabe que tem sido um período difícil para o pessoal do teatro, segmento dos mais vitimados financeiramente pela pandemia, e talvez esse produto audiovisual tenha surgido dessa urgência. O que não é um problema. Pelo contrário, para quem se interessa pelo métier, é fabuloso ter um documento como esse, que inclui leitura de trechos da peça como se fosse o trabalho de mesa e até imagens do texto impresso rasurado, emendado, anotado.

Renata Cazarini





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