MONSTRO - Leitura dramática



Dramaturgia: Karen Sacconi

Quando: 13.05.2021

Duração: 65 min.

Direção: Milena Faria

Elenco: Anselmo Ubiratan, Eliete Faria, Milena Faria, Marcos Suchara, Samara Nemenz

Direção Musical: Anselmo Ubiratan

Trilha Sonora: Anselmo Ubiratan e Tarsila 

Operação de som: Carla Cocenza

Produção: As Malecuias

 

Link para o vídeo.



Nota Bene:

Karen Sacconi e Milena Faria são classicistas, egressas da Universidade de São Paulo (USP), e atuam no campo teatral cada qual à sua maneira, na performance e na dramaturgia. Agradeço terem colaborado com o blog deixando o importante registro de suas experiências com essa produção feita na plataforma digital durante a pandemia da Covid-19. Karen já havia colaborado com o blog antes, relatando sua produção dramatúrgica anterior, chamada “Festim”. Leia aqui.


Sinopse de “Monstro” pela dramaturga


Influenciada por um líder recém-chegado ao poder, Silvana passa a levar seu cachorro, Glock, a uma rinha de cães. A rinha é defendida pelo novo líder como prática e símbolo dos novos tempos, representando a supremacia do mais forte e o culto à violência. Sob o olhar entusiasmado do pai e reticente da mãe, a jovem Silvana adere a essa versão distorcida de meritocracia. Na rinha, ela encontra um rapaz encarregado de implementar as ordens do líder: incentivar a luta dos animais e administrar o trabalho dos faxineiros, incumbidos de se livrar dos corpos dos cães mortos.


O momento de inflexão se dá com a morte de um faxineiro, atacado pelo cão enquanto fazia seu trabalho de limpeza da carnificina. A morte de uma pessoa coloca em xeque a rinha e fará que a mãe de Silvana, antes condescendente com a prática, se oponha à continuidade da luta de cães. Mas Silvana escolhe defender a rinha, a nova ordem imposta pelo líder, e radicaliza sua visão de que os divergentes devem ser tirados do caminho.


Como forma de reafirmar sua convicção, Silvana leva Glock novamente à rinha, para uma luta que resultará na morte do cão oponente. Ela virá a descobrir que o cão morto era uma cadela, a mãe de Glock. A revelação, feita pelo Rapaz, traz um novo elemento para a construção da moralidade enviesada da jovem. A situação põe à prova o alcance de sua concepção de justiça: há limite para a supremacia do forte? É aceitável que uma mãe seja morta pelo filho por ser mais fraca, física ou – segundo sua visão – moralmente?


Silvana entende que sim: não só aceitável, mas desejável. Ela decide levar às últimas consequências sua adesão à nova ordem e inclui os próprios pais, que a essa altura já questionam o novo líder, entre aqueles que devem morrer.




Proposta de dramaturgia por Karen Sacconi*


“A justiça consiste em fazer o que é vantajoso para o mais forte”. Assim uma personagem de Platão define o que é a justiça na obra A República. Trasímaco, o autor da frase, é logo rechaçado por Sócrates e desaparece no diálogo platônico pouco depois de ter entrado nele. Trasímaco, ao que parece, não era um interlocutor digno.


Monstro tem como premissa um Trasímaco no poder. E se volta para uma discussão acerca de justiça e civilidade que, se parecia primária demais aos olhos de Platão, hoje está na ordem do dia. O drama toma emprestado de Platão a personagem de Trasímaco para encarnar um líder que propõe uma versão repaginada da lei da selva, e por isso representa, em termos civilizatórios, o retrocesso.


A concepção dramatúrgica de Monstro se assenta em dois modelos. O primeiro é o da tragédia grega, referência não só enquanto estrutura formal, mas também como parte de um diálogo intertextual, ou “interdramático”.


O prólogo remete a Édipo Rei. Como chefe de Tebas, Édipo é confrontado, no início da tragédia, com a peste que assola a cidade. Em Monstro, o líder, Trasímaco, dirige-se ao povo para dizer como conduzirá a situação. Mas a peste aqui tem uma dimensão dupla. Se por um lado alude à pandemia atual e à forma com que o chefe lidará com ela, por outro, evoca a onda de obscurantismo e truculência que contagia parte da população. A imagem do ar contaminado com o cheiro de podridão perpassa toda a peça e reforça essa dimensão simbólica da peste. Como em Édipo, o miasma vem do próprio líder.


Em termos de estrutura, o texto recupera, em alguma medida, o arcabouço formal da tragédia clássica. A ação principal é entrecortada por cenas que, se no início parecem apenas compor uma ação paralela com a finalidade de respiro cômico – as três senhoras que tomam chá –, aos poucos, vão se conformando em uma espécie de coro trágico, cuja função é refletir e comentar os eventos da ação dramática principal num registro mais poético.  


Além do prólogo, outras cenas típicas da tragédia são resgatadas, como a cena de reconhecimento, momento de revelação de informação-chave que, em Monstro, se dará com a descoberta de que Glock matou a própria mãe; a narração da morte ocorrida fora de cena por um mensageiro – o Faxineiro; e a cena de lamento, o chamado kommós da tragédia grega, protagonizada por Silvana em dois momentos, após a cegueira do cão e após a morte dos pais. Por fim, a catástrofe, a morte dos pais de Silvana.


A escolha de revisitar a estrutura da tragédia e algumas de suas imagens serve a um propósito: ao mesmo tempo em que impõe certo distanciamento estético, reflete o atual momento de pessimismo e de uma prolongada catarse social, gerada pela convivência com um inconcebível número de mortes diárias e uma liderança nefasta.


O segundo fundamento da concepção dramatúrgica do texto reside numa combinação de dois elementos típicos do teatro e da literatura moderna: o duplo e a metamorfose da personagem em animal, cujos precedentes literários e dramatúrgicos mais conhecidos são A metamorfose, de Kafka, e O Rinoceronte, de Ionesco.


Em Monstro, o cão é o duplo de sua dona. Como Glock, que é levado à rinha, Silvana também vai se embrutecendo; e assim como o cão mata a mãe, Silvana matará seus pais.


A metamorfose de Silvana em cão, porém, se dá no plano simbólico. A rinha representa para o cão o retorno induzido, artificial, a um estágio pré-domesticação. Para o homem, o culto à barbárie. À medida que Silvana passa a desprezar a vida do outro em nome de sua concepção de justiça supremacista, se bestializa.


O título da peça, Monstro, remete sobretudo à deformidade moral dessa concepção de justiça, que leva, na peça, ao ato indizível de matar os pais. Mas também pode aludir a anomalias em outros planos. Em relação à construção das personagens, por exemplo, o monstro se revela na tríade Trasímaco-Silvana-Glock, como desdobramento de um “espírito trasimaquiano” em diferentes níveis. No que tange à estrutura dramática, a combinação de elementos díspares, em princípio inorgânicos, do teatro clássico, de um lado, e do teatro e literatura moderna, de outro, dá ao texto, também nesse plano, certo caráter de monstruosidade.  



*
Karen Sacconi é dramaturga. Possui graduação em Letras Português/Grego pela Universidade de São Paulo (2007), mestrado (2012) e doutorado em Letras Clássicas pela mesma universidade (2018) - tese indicada ao Prêmio Capes de Tese (2019). Foi professora de literatura grega e retórica na UNESP Araraquara (2018) e professora de grego antigo no Centro de Línguas da FFLCH/USP (2010-2012). É tradutora e pesquisadora.




Relato da diretora Milena Faria*

Quando, em 2019, recebi o convite para fazer a leitura dramática de uma peça da Karen Sacconi, não tive dúvidas: aceitei de pronto o convite, pois sabia da qualidade de todo o trabalho que ela vinha desenvolvendo ao longo de sua carreira acadêmica e sabia que sua peça teria também tal qualidade.


Em 2020, em meio à pandemia, ela me apresentou o texto. Sozinha, no meu apartamento, sem ver amigos e família, li e chorei. Gritou-me, por meio do seu texto, a nossa realidade. Não era a pandemia da Covid-19 o nosso maior problema, era a epidemia de um discurso de ódio se alastrando pelos quatro cantos do país, minimizando dores, exaltando torturadores, discurso esse cujo espalhamento se deu mais rápido do que a variante Delta. Ao mesmo tempo em que me senti impotente, arrebatada por saber que realidade e ficção nunca caminharam tão juntas, tive a impressão de estar vivendo um momento muito especial, que é daqueles quando nos deparamos com uma obra de arte. Pensei: “este texto vai ser um soco no estômago, do jeito que eu gosto.” Mais do que isso, era lindo ver como as influências literárias de Karen estavam presentes no texto, mas não eram mera imitação, pois Karen deixou impressa a sua autenticidade.


A figura de Trasímaco, ao início da peça, como o salvador daquele lugar, me lembrava Édipo diante dos portões de Tebas. Mas, ao contrário dos heróis gregos, que com sua hýbris carregam sua própria desgraça, por meio da cegueira, não era ele quem cairia. Ao discutir sobre isso com Karen, chegamos à conclusão de que Trasímaco era um espírito do seu tempo, uma espécie de divindade, espalhando o ódio e acima dos meros mortais. Esse espírito vai e volta, assola a sociedade onde aparece e depois se esconde novamente.


A queda estava preparada para outra personagem, Silvana, essa sim, que percebe tarde demais as consequências de seu ódio. Eu sabia que leria Silvana e, ao me deparar com o texto dela pela primeira vez, percebi que o desafio não seria pequeno. Silvana exigia nuances, um início leve, quase inocente, de alguém que está encantada com o discurso que viu na TV, com a possibilidade de se fazer justiça num país de enorme desigualdade. Empolgar-se com um discurso que promete justiça nessas condições não seria algo difícil, mas a questão era que Trasímaco defendia uma justiça aos mais fortes, com a morte e opressão dos mais fracos e aí estava o desafio: como entender uma personagem que se empolga diante desse tipo de discurso, que se encanta com essa lógica retórica violenta e que precisa se mostrar, de início, como uma pessoa que quer o bem da nação, uma pessoa que defende valores familiares e que, no final, se transformará em assassina de seus próprios pais?


Li mais algumas vezes o texto, antes de mostrá-lo aos demais atores. Discuti-o com a Karen - que privilégio poder falar sobre uma obra com a sua própria autora! - comecei então a pensar quais atores seriam mais adequados para cada personagem e então fizemos um primeiro ensaio. Mal sabíamos, mas ainda teríamos um longo processo de ensaios, com mudanças aqui e ali, com testes de atores fazendo outras personagens, para chegarmos à versão da leitura que apresentamos no dia 13 de maio.


O grupo ficou igualmente impactado com o texto. Eu contava com atores experientes e sensíveis, o que nos ajudou muito no processo. Após a primeira leitura, seguiu-se um silêncio, daqueles densos, que a gente sabe o que significa: o soco no estômago. Os atores e atrizes ficaram impressionados com a poética da dramaturgia, com a força da palavra. Nós estávamos em um projeto paralelo, trabalhando Homero e sempre discutíamos a questão da importância da palavra, de como, por meio delas, o poeta traz o que está no mundo do não-ser para o ser. Tratamos a palavra como algo sacro, portanto. As leituras, então, tiveram esse cuidado, pois queríamos potencializar, com a nossa sensibilidade de atores, a sensibilidade da autora e, assim, tocar a sensibilidade do público.


Passados os primeiros ensaios, começamos a explorar soluções técnicas e estéticas para a leitura dramática. Não sabíamos ainda em qual plataforma digital apresentaríamos, se faríamos uma leitura mais simples, sem recursos de luz, som e adereços ou não. Karen então nos trouxe uma música tema, feita por uma amiga dela, a Tarsila. A partir desse tema, uma atmosfera se instaurou. Decidimos então que faríamos a apresentação diante de um fundo negro, que nos unisse, mesmo de forma online. O figurino também seria preto, para que somente nossos rostos ficassem em destaque. Escolhemos então a plataforma Sympla Zoom, para a organização do evento e as cenas foram trazendo a necessidade da criação de mais músicas e sonoplastia. Contávamos com o talento de Anselmo Ubiratan no grupo, que com muita maestria compôs os elementos da trilha que estavam faltando.


Quando começamos os ensaios dentro da plataforma, percebemos que teríamos um problema técnico grande, que estava tirando o nosso sono: como fazíamos diversas personagens, achamos necessário trocar o nosso nome dentro do Zoom, para indicar qual era a personagem da vez e facilitar, assim, a compreensão do público. No entanto, essa troca, além da execução da luz, da leitura das rubricas e trocas de adereços, tornava o nosso papel de atores e atrizes muito árduo, pois estávamos sempre pensando em alguma questão técnica e não conseguíamos nos concentrar no que era o nosso principal trabalho: interpretar o texto. Foi aí que sentimos a necessidade de chamar uma pessoa responsável pela execução do som, a Carla Cocenza, que veio como um anjo nos salvar! Além de ajudar com toda a execução da trilha e a mudar os nomes das personagens nos momentos em que a troca se dava de forma muito rápida, ela foi a primeira espectadora da leitura e nos trouxe a confirmação de que o trabalho estava no caminho certo.


Depois da chegada da Carla, finalmente pudemos nos concentrar em trabalhar a interpretação e, acredito eu, conseguimos chegar a um resultado muito comovente. Compartilhamos com o público, em 13 de maio de 2021, essa experiência de estar numa peça que parece distópica e é, ao mesmo tempo, um grande espelho da nossa realidade. Essa experiência foi muito potente. O público nos recebeu de modo acalorado. Muitos vieram conversar conosco nos dias seguintes, dizendo-se tocados pelo texto. Esse foi um primeiro passo, espero que de muitos, na jornada de “Monstro”. Vida longa à peça! Arte e resistência!



*Milena Faria é atriz d’ As Malecuias e diretora de “Monstro”. Possui graduação em Letras Português/Grego pela USP (2006) e mestrado em Letras Clássicas (2010). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Línguas Clássicas, atuando principalmente nos seguintes temas: Comédia Grega Antiga, Aristófanes, Tragédia Grega, "As Rãs" e "As Tesmoforiantes".


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