BLOG DE LUTO


Era pra ser uma resenha que ela leria com a generosidade que lhe era característica.


Infelizmente, torna-se uma homenagem póstuma. É assim que estou vivendo esta dor neste sábado, 10 de julho de 2021, quando nos deixou a Profa. Dra. Zelia Ladeira Veras de Almeida Cardoso. Amante do teatro de hoje e de um ontem bem remoto, tradutora de peças escritas em latim por Sêneca no século I d.C. e autora de manuais de literatura antiga, Zelia esteve tão ativa no primeiro semestre deste ano que nem se pôde notar que estava doente.


Ela celebrou os 50 anos do Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo, do qual foi a primeira aluna. Isso foi em 24 de junho de 2021, provavelmente a última participação em vídeo da nossa longeva magistra. Zelia completou 87 anos em 8 de julho. Veja o vídeo aqui.


No final de abril, ela havia lançado a tradução da peça “Otávia” em edição bilíngue, com sua introdução e notas, pela Editora Madamu. Comprei meu exemplar de imediato, mas nem tive a oportunidade, em meio ao isolamento durante a pandemia, de me reunir com ela e pedir que o autografasse. Tem dessas coisas esta vida.


Agora, é inadiável fazer a resenha. Mas já saibam que vai plena de afeto.


RESENHA

OTÁVIA do pseudo-Sêneca

Edição bilíngue

Introdução, tradução e notas de Zelia de Almeida Cardoso

198 p

Madamu

2021


O modus operandi da tradutora Zelia de Almeida Cardoso era o mesmo da magistra, ou seja, didático. Ler uma de suas traduções das tragédias escritas por Sêneca no século I d.C. é imergir num estudo da língua latina, se a edição for bilíngue, e da cultura romana, com um rico aparato paratextual. Então, sua Otávia segue o modelo já adotado em As Troianas, peça publicada em 1997 pela Editora Hucitec, numa edição bilíngue com introdução, tradução e notas, além de referências bibliográficas e de um glossário. Outras traduções de textos teatrais senequianos feitas por ela se encontram no volume publicado pela Editora WMF Martins Fontes, em 2014: além de “As troianas”, ali estão “A loucura de Hércules” e “As fenícias”, mas a edição não é bilíngue, embora também rica em aparatos.


Zelia justifica a relevância da tradução de Otávia na “Apresentação” (2021, p. 7):

Otávia – peça que se ocupado do repúdio e da condenação da primeira esposa de Nero – se situa na raiz da teatrologia ocidental baseada em fatos da história romana. Representa o ponto inicial de uma tendência, que iria desenvolver-se durante a Idade Média, atingindo o Renascimento, para florescer com a dramaturgia elizabetana e com o seiscentismo francês, chegar ao século XVIII e permanecer durante o Romantismo, o Realismo e o Modernismo, quando autores de peças teatrais e de textos e roteiros a serem utilizados em filmes cinematográficos se ocuparam de temas referentes à história de Roma, sob os seus múltiplos aspectos.


Essa observação me lembrou o questionamento que ela me fez, quando lancei este blog, sobre incluir, no repertório que acompanho, as tragédias romanas de Shakespeare (Tito Andrônico, Júlio Cesar, Antônio e Cleópatra, Coriolano). Eu disse que preferia não misturar o bardo – um mundo – com nosso repertório da Antiguidade – um mundo ainda maior. E esse limite ficou, pois, estabelecido. Mas ela não concordou. Estou segura disso.


Sobre esse repertório shakespeariano, recomendo este artigo.


A Otávia é uma peça do luto, não muito distante, nesse aspecto, de As Troianas, texto sobre o qual Zelia se debruçou por muitos anos. O luto (luctus), as sombras (umbris), a morte (caesum, necem), o lamento (maeret, lugere), o choro (deflenda, flere), o pranto (defleo) são termos recorrentes nos primeiros 70 versos da Otávia, quando a esposa, que é também irmã adotiva de Nero, revela o abandono em que se encontra após ter perdido a mãe (Messalina) e o pai (o imperador Cláudio): “Preservada até agora para os meus sofrimentos, / permaneço como a sombra de um grande nome” (2021, p. 75, v. 70-71) [Nunc in luctus seruata meos / magni resto nominis umbra].


Até onde é de meu conhecimento, a magistra não realizou traduções metrificadas, apostando na transmissão do conteúdo acima do resgate da forma, sem, contudo, descuidar-se de um texto bem elaborado, elegante, correto. Adotando suas obras em sala de aula, posso testemunhar a funcionalidade de suas traduções na análise da formulação latina do poema dramático frente à versão brasileira em prosa: sempre elucidativas.


Nesta peça atribuída a um desconhecido seguidor de Sêneca, Zelia identifica ecos de textos reconhecidamente senequianos, o que fica evidente nas “Notas à tradução” (p. 161-175). A posição da pesquisadora é clara desde a capa do livro, que identifica o autor como “Pseudo-Sêneca”. Ela usava como base para suas traduções o texto latino estabelecido por Léon Herrmann, uma edição francesa das Tragédies de 1971, da coleção Les Belles Lettres, que também classificava a Otávia como interpolação no corpus do Seneca tragicus (2021, p. 12).


Sêneca, que foi tutor de Nero, aparece como personagem na peça apócrifa. Seu repertório dramatúrgico considerado autêntico (também não sem alguma polêmica) restringe-se a peças com figuras mitológicas: Medeia, Édipo, Fedra, Hércules, Tiestes, Agamêmnon. Já Otávia é classificada como praetexta ou histórica. Na primeira parte da sua “Introdução”, Zélia esclarece o contexto ou “emaranhado de fatos” (2021, p. 17) de onde se extrai o enredo, passando em seguida para uma “discussão empolgante” (ibidem) sobre o conceito de ficção histórica, pesquisa que ela desenvolveu como bolsista de produtividade do CNPq, mas que poderia ter uma amarração mais crítica e menos descritiva.


Para apresentar em detalhes a estruturação da Otávia, ela recorre aos paradigmas aristotélicos ou às chamadas seis partes da tragédia”: mito, caracteres, elocução, melopeia, espetáculo, pensamento (2021, p. 32). Também faz uso da teorização da especialista francesa Anne Ubersfeld e o seu livro Lire le théâtre com a proposta de personagem actancial (2021, p. 37). Pode causar estranheza aos estudiosos da tragédia senequiana a preferência de Zelia por dividir a peça em prólogo, três episódios e êxodo, intercalados por quatro cantos corais, incluindo o párodo, ao invés dos cinco atos, o que ela justifica na nota 67 dizendo seguir a convenção aristotélica (2021, p. 33). 


Por outro lado, ainda que Aristóteles pudesse considerar o espetáculo (opsis) menos importante do que o mito (mythos), Zelia destaca – o que muito me agrada – que Otávia é “uma obra de arte teatral” (2021, p. 54). Ela observa em detalhes como o texto trágico traz didascália interna, característica do teatro antigo, sendo que o moderno usa rubricas explicitando entradas, saídas e outros movimentos cênicos. Citando os exemplos da entrada do fantasma de Agripina com uma tocha na mão ensanguentada (v. 594) e de uma descrição de Popeia trêmula, transtornada e em lágrimas (v. 690-2), na avaliação de Zelia: “Um diretor de cena saberia como tirar partido das duas situações oferecendo ao público uma cena espetacular, visualmente inesquecível” (ibidem).


Um dos temas mais polêmicos em torno das tragédias latinas supérstites (que são as do corpus senequiano já que as anteriores são fragmentárias) é que não há registro de que elas tenham sido encenadas em sua época. Assim, o debate sobre a teatralidade desses textos persiste. Zelia acreditava que o seu texto da Otávia está formatado para a cena (2021, p. 9). Eu tenho a expectativa de vê-lo encenado, o que será a maior homenagem para uma amante do teatro.

Renata Cazarini


Leia a homenagem que o blog havia feito a Zelia de Almeida Cardoso em 2017.

Leia o texto muito especial escrito em 2017 pelo professor Jaa Torrano (USP): Kallínikos Zelia.

Atena enlutada. Relevo de mármore, 460 a.C. Atenas Acr. 695. Colaboração de Wilson Alves Ribeiro Jr.


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