DE NOVO, [AS] RÃS EM EPIDAURO [COMENTÁRIO]
*Adriane da Silva Duarte
O ótimo comentário de Camila de Moura sobre a encenação de Rãs, no Festival de Teatro em Epidauro, publicado aqui no Palco Clássico, me inspirou a também escrever uma breve nota. Breve porque, assim como a Renata, no primeiro terço da peça me alcançou a notícia da morte da querida Zelia de Almeida Cardoso, o que me deixou igualmente “atordoada e desatenta” (faço minhas as palavras da Renata). A televisão, no entanto, continuou ligada e as imagens continuaram fluindo sem que, confesso, conseguisse acompanhar o que se passava. Ainda assim, quero falar de alguns aspectos da montagem que me chamaram mais atenção, até porque são raras as oportunidades de assistir comedia grega antiga.
Oliver Taplin, em seu estudo clássico sobre Ésquilo (The stagecraft of Aeschylus: the dramatic use of exits and entrances in Greek Tragedy, 1977), observa que o leitor do drama antigo deve sempre se esforçar para visualizar como o texto ganharia corpo em cena, projetando o movimento dos atores no palco, seu gesto, o cenário. À força de tanto exercitar essa direção de cena mental, me passa um filme da peça quando a releio. Quem assistiu O Gambito da Rainha, sabe como é. É mais ou menos como ver as peças de xadrez ganharem vida e disputarem partidas no teto... Obviamente, por esse raciocínio, cada espectador é um diretor em potencial, o que não implica que ao assistir uma montagem não venha a ser surpreendido com as soluções apresentadas no espetáculo. E havia muita coisa bacana na montagem de Argyro Chioti, mas outras achei que floparam.
Para ficar na parte inicial da peça, que assisti com atenção, achei que se desperdiçou a oportunidade de explorar aquelas que, na minha opinião, são as cenas mais hilárias de todo o teatro grego: o diálogo inicial entre Dioniso e seu escravo Xantias e a visita do deus a seu meio-irmão Héracles. Camila de Moura já apontou que o encontro entre Dioniso e Héracles representa um momento em que o humor antigo e a recepção contemporânea confluem amplamente.
A primeira cena foi arruinada por um adereço inadequado. Xantias se queixa o tempo todo do peso das bagagens que tem de carregar. Dioniso, num argumento sofístico, insiste que ele não faz esforço, uma vez que vai montado no burro, mas ele se contorce com o esforço, trocando seguidamente as trouxas de ombro. Uma vez em frente à casa de Héracles, ele desce do animal, mas ainda carrega a carga. Quando finalmente a põe no chão, Dioniso ordena que retomem a viagem e ele tem de reerguê-la.
O cinema mudo explorou maravilhosamente esse esquete, como é o caso de The music box (1932), em que o Gordo e o Magro devem entregar um piano – não sou do tempo do cinema mudo, mas na minha infância, aos domingos de manhã, a TV aberta passava festivais de Gordo e o Magro, Harold Lloyd e outros gênios da comédia, que assisti e depois fui atrás de Charlie Chaplin, Buster Keaton e Max Linder. Em Epidauro, arruinaram toda a cena com aquela sacola magra que Xantias carregava sem dificuldade e com a falta de timing para a coreografia.
O segundo ponto é o momento em que Héracles abre a porta e se depara com Dioniso “fantasiado” como ele, com a pele de leão às costas e a clava na mão. Sempre supus que Héracles deveria usar o mesmo figurino, originalmente seu, afinal a iconografia o apresenta sempre a caráter. Ao abrir a porta, veria diante de si um duplo e teríamos a cena do espelho vazado (phony mirror routine), em que alguém imita os gestos de quem se olha no espelho, caracterizado como ele: esquete comum no cinema mudo, como em Seven Years Bad Luck (1921), de Max Linder, mas também um clássico dos desenhos animados, como Scooby-doo, por exemplo.
Scooby-doo, "Scooby's Gold Medal Gambit", em que alguém fantasiado de Scooby
imita seus movimentos como se fosse seu reflexo.
Passado o espanto inicial e notando estar diante de uma caricatura grotesca, o semideus passaria a zombar do visitante. E o que acontece em Epidauro? Um Héracles de pijamas ou algo assim vem atender a porta e o melhor da piada se perde. Isso realmente me deixou mal-humorada, um ano mais velha!
Por fim, uma última observação, sobre o coro. Estava curiosa para ver como resolveriam o coro, esse verdadeiro calcanhar de Aquiles das montagens contemporâneas de teatro antigo. O das Rãs é particularmente interessante porque muitos estudiosos da peça defendem que o coro de rãs cantaria dos bastidores, sem vir à orquestra, dado que seria muito caro caracterizar dois coros – o segundo coro, que é o principal, é formado pelos iniciados nos mistérios. Bem, ambos os coros veem à cena, mas bastante desidratados. O coro cômico que, se estima, contaria 24 coreutas, se reduz a uma meia dúzia e a orquestra fica vazia.
Não estou defendendo uma montagem de viés arqueológico, que deva reconstituir a materialidade do teatro antigo, mas uma vez que a peça tem por cena o Teatro de Epidauro, seria bom considerar uma forma de ocupar bem o espaço majestoso – e o maravilhoso coro de Os Persas, encenado ano passado, é prova de que se pode fazer isso. Um coro mínimo, por sua vez, caberia bem em um teatro italiano. Camila de Moura aponta que o figurino variado do coro, não-uniforme, confunde coreutas e personagens, que, na ausência de um estrado convencional, circulam também pela orquestra. Além de enxuto, achei o coro exangue, desfilando em fila indiana (vale para o começo da peça, lembro) sob o som lamuriento dos instrumentos de sopro.
Embora não tenha visto como merecia, a segunda parte da comédia (recepção na casa de Hades, agón entre Ésquilo e Eurípides) me pareceu mais bem resolvida no que respeita ao ritmo e à caracterização.
*Adriane da Silva Duarte é livre-docente da USP, atuando na área de Língua e Literatura Grega tanto na graduação como na pós-graduação. É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. As principais linhas de sua atividade como pesquisadora são o teatro grego e cenas de reconhecimento, a comédia grega antiga, a produção de Aristófanes, dedicando-se atualmente à tradução e estudo do romance grego antigo. Coordena o Grupo de Pesquisa “Estudos sobre o Teatro Antigo”, fundado em 2002. É graduada em Ciências Sociais pela USP, com mestrado e doutorado em Letras Clássicas. Publicou a tradução de “As Aves” (Hucitec, 2000) e “Duas Comédias: Lisístrata e As tesmoforiantes” (Martins Fontes, 2005), entre outras obras.
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