As Rãs [COMENTÁRIO]


AS RÃS (Aristófanes)

Em grego moderno, legendas em inglês.

Tradução: Nikos A. Panagiotopoulos

Onde: Teatro de Epidauro, Grécia (transmissão ao vivo)

Quando: 10.07.2021

Duração: 100 min.

Diretor: Argyro Chioti

Coreografia: Manuk Karyotakis

Cenário: Eva Manidaki

Figurino: Angelos Mentis

Link do Festival de Teatro, com ficha técnica completa.



Nota Bene:

Enquanto eu via a transmissão, recebi a notícia do falecimento da professora Zelia de Almeida Cardoso, o que me deixou atordoada e desatenta. O que eu poderia escrever ficaria muito aquém do que tenho a felicidade de publicar, agradecendo sinceramente a colaboração de Camila de Moura, que integra o Grupo de Estudos de Teatro Antigo (GTA/USP-CNPq), do qual a nossa já saudosa magistra era uma das coordenadoras com Adriane da Silva Duarte (USP), também colaboradora deste blog. É importante que tenhamos sempre registros dos acontecimentos teatrais para subsidiar nossas pesquisas.



O RISO E A PESTE [COMENTÁRIO]


Camila de Moura*


Pelo segundo ano consecutivo, o Festival de Verão de Atenas nos brinda com a transmissão online ao vivo de um drama clássico reencenado na orquestra milenar do Teatro de Epidauro. Depois da tragédia Os Persas, de Ésquilo, em 2020, este ano foi a vez de uma comédia, e não qualquer comédia. As Rãs, de Aristófanes, encenada pela primeira vez em 405 a.C., trata da descida ao Hades de Dioniso, deus do teatro, junto de seu escravo Xântias, com o fim de trazer de volta à vida um dos grandes mestres da tragédia ateniense. A motivação de sua empresa é a deterioração moral de Atenas, que Aristófanes associa à decadência do gênero trágico. 


A peça foi encenada cerca de um ano após a morte de Sófocles e um ano antes do fim da Guerra do Peloponeso, conflito que se estendeu por quase três décadas e expôs a população ateniense a graves intempéries: golpes oligárquicos, penúria financeira e uma peste assoladora que dizimou a população e vitimou o estadista em que se concentravam as maiores esperanças democráticas – Péricles. O cenário conturbado não parece tão distante de nossos tempos, em que pandemia e ameaças à democracia andam de mãos dadas. Assim, enquanto os espectadores afluíam para as arquibancadas antes do início da apresentação, a seguinte pergunta pairava: o que pode a arte contra a peste?


Além disso, encenar As Rãs não é tarefa fácil. A Comédia Antiga caracteriza-se por seu forte teor político, isto é, por alusões a acontecimentos da ordem do dia, e pelas invectivas pessoais contra demagogos, generais, poetas e filósofos de seu tempo, numa operação carnavalesca em que ilustres e poderosos eram postos à prova do ridículo diante de seus concidadãos. É por isso que, já nos séculos I-II d.C., segundo o testemunho de Plutarco (Quaes. Conv. 7.8.3), seria preciso trazer gramáticos aos banquetes para explicar quem eram aqueles “fulanos” da Comédia Antiga, sob o risco de que fosse recebida como uma zombaria sem sentido. 


Enquanto eu meditava sobre essas questões, o aviso sonoro ressoa no teatro e ingressam na orquestra Dioniso e o escravo Xântias montado nos ombros de um burro, interpretado por um ator mascarado. Depois das chacotas iniciais, Xântias se queixa do fardo pesado que lhe toca carregar, e lamenta-se por não ter lutado nas Arginusas. A piada, que deve ter arrancado sonoras gargalhadas à audiência de seu tempo, é recebida com indiferença pelo público atual. No palco, não há o recurso das notas de rodapé para explicar que os escravos que lutaram no mar das Arginusas em 406 a.C. foram libertados após o regresso a Atenas. As tiradas com apelo literal ou escatológico, por outro lado, provocam uma reação calorosa.


A escolha de duas atrizes para interpretar Dioniso e Xântias é das mais felizes, considerando que no teatro clássico todos os atores eram do sexo masculino. Maria Kechagioglou, que faz o papel de Dioniso, traja um fato amarelado, uma capa laranja vibrante, sapatos pretos e uma peruca leonina, e traz nas mãos uma clava de madeira. A caracterização é bastante próxima do texto aristofânico, que brinca com a dualidade entre o vestido amarelo açafrão e as botas, típicos das matronas atenienses, e a pele de leão e a clava, elementos viris associados a Héracles. Dioniso se disfarça, qual um ator, com os signos do herói que realizou uma descida aos ínferos como parte de seus 12 trabalhos. Muitas são as dualidades, aliás, que marcam a personagem do deus do teatro: matrona e herói, mulher e homem, deus olímpico e cidadão médio ateniense, amo e escravo (quando lhe convém, ele e Xântias invertem seus papéis).


O diálogo com Héracles rende bons momentos. Dioniso pede ao herói que lhe indique um caminho rápido para chegar ao Hades, ao que Héracles responde que basta enforcar-se, beber cicuta ou atirar-se de uma torre. A comicidade do texto é captada de imediato pela plateia nas arquibancadas de Epidauro. 



Quanto à cenografia, um único elemento centraliza a ação. Trata-se de uma rampa metálica em dois níveis que conduz do centro da orquestra ao proscênio. A princípio, a rampa é utilizada para marcar a transição entre os mundos. Enquanto Dioniso e Xântias sobem, Caronte surge na extremidade mais alta, indicando que dali em diante estende-se o lago que marca a fronteira com o mundo dos mortos. Durante a travessia, o coro de rãs que dá nome à peça surge no proscênio, e o arranjo de vozes é excepcionalmente bem-sucedido, remetendo imediatamente ao som dos batráquios. É também por essa rampa central que entra em cena o coro de iniciados – e não pelo párodo lateral, como no teatro antigo. Divertidas e impactantes, as passagens líricas, a cargo de Jan Van Angelopoulos, ainda ressoam em meus ouvidos dias depois da encenação. Durante a peça, não raro me via ansiando pelo retorno do coro, e as melodias contagiantes cresciam a cada vez que eram repetidas, como na invocação de Íaco: Ἴακχ’ὦ Ἴακχε (“Íaco, ó Íaco”). O excelente desempenho do corifeu (Antonis Miriagos), que dançava hipnoticamente encarando a plateia e se movia com grande independência no palco, também merece ser destacado.


Outro ponto alto foi a caracterização de Ésquilo e Eurípides, cujas sutilezas marcam o antagonismo que começa a ser produzido entre os dois tragediógrafos a partir da peça de Aristófanes. Ésquilo ostentava um físico algo mais robusto e uma barba respeitável, e seu figurino exalava conservadorismo: camisa social, colete, casaca. Eurípides, mais franzino e sem barba, traz, por baixo da casaca de cor vibrante, uma camisa colorida com as mangas desabotoadas, à maneira de um artista de vanguarda.



Quando a troca de ofensas entre os dois atinge o ápice, Eurípides começa a despir-se, atirando para longe as calças, enrolando a camisa sobre o peito e intensificando seus trejeitos – nesta passagem, senti-me de fato transportada a outro tempo, ao tempo em que os atores cômicos trajavam grosseiros falos de couro e máscaras de expressões marcadas.


Tenho a impressão, porém, de que tal experiência foi facilitada em grande medida pelo jogo de câmera, e me perguntava durante a exibição se os espectadores presentes no teatro eram capazes de distinguir tais detalhes (Renata Cazarini e Flavia Vasconcellos Amaral já trataram do problema da transmissão teatral em seus comentários à encenação de Os Persas, aqui neste blog).


Além disso, durante o agón poético entre Ésquilo e Eurípides, a rampa cênica perde a sua função inicial, passando a servir de anteparo ao deus Hades e ao coro, que, espalhado por sua extensão, assiste à cena. Essa confusão entre o coro e os atores, cujos figurinos coloridos se misturam, levaram-me por vezes a perder de vista onde estavam os personagens principais.


A transposição da peça para o grego moderno, realizada pelo tradutor e poeta Nikos Panagiotopoulos, enxugou as referências históricas presentes no texto, tornando-o mais palatável a uma audiência moderna. Há, porém, na comédia de Aristófanes, um momento crucial e inescapável, quando Dioniso, antes de tomar sua decisão final, faz uma última pergunta a Ésquilo e Eurípides: qual sua opinião sobre Alcibíades? Eu estava curiosa para ver o que fariam com essa referência tão importante. Domesticar o texto, trocando o nome do estratego ateniense pelo de alguma figura igualmente controversa e ambivalente da política contemporânea, ou manter o nome grego? A produção da peça optou pela manutenção do nome de Alcibíades, abrindo mão do engajamento com a plateia que a alusão a uma figura polêmica de nossos dias certamente teria provocado.



Assim, as perguntas que eu me fazia antes do início do espetáculo permaneceram sem resposta. Estamos muito distantes do tempo em que a poesia arregimentava multidões aos teatros, em que o estado entendia o espetáculo dramático como uma ferramenta de cura (o Teatro de Epidauro foi construído no século IV a.C. como parte do Santuário de Asclépio, deus da medicina, um dos maiores da Grécia antiga), em que a arte permeava a vida comum e coletiva dos cidadãos e tinha importância central na sua formação. 


Porém, depois de mais de um ano de confinamento, será que podemos ainda, seguindo a voga de nossos tristes tempos, considerá-la como mero entretenimento? Dada a tarefa hercúlea que tinha diante de si, a jovem diretora Argyro Chioti foi muito bem-sucedida em reacender essas questões. Afinal, como diz o refrão, “A arte não responde, pergunta”.



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Camila de Moura é bacharel em Letras Português/Grego e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com dissertação em torno às antigas biografias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Atualmente, cursa doutorado em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo, investigando o grande conjunto das Vidas de poetas gregos. Seus principais interesses de pesquisa são as Vidas antigas, o romance antigo e o teatro clássico. Vive em São Paulo, onde atua também como tradutora.


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