O diminuto na encenação de “Os Persas” [COMENTÁRIO]

                                                                                        Crédito: Marilena Anastasiadou



Flavia Vasconcellos Amaral*


A imensidão do império persa. A distância entre Atenas e Susa. A hybris de Xerxes. A grandiloquência de um texto amplificada por uma performance magistral focada na declamação métrica e, por vezes, musical. A imponência do teatro de Epidauro. O tamanho da audiência in loco e online. A urgência de uma adaptação das artes cênicas diante de uma pandemia global. Esses são apenas alguns elementos da grandiosidade que molda, perpassa e coroa a encenação de “Os Persas”, realizada em 25 de julho de 2020, a primeira transmissão live streaming direto do milenar teatro de Epidauro. Mas para que o grande se erga como tal, a existência do pequeno é indispensável. O pequeno se revela em diversas instâncias nessa peça, sobretudo no diminuto contrastante presente nos detalhes, muitas vezes apenas apreendidos pela perspectiva da transmissão do espetáculo.


Toda encenação é um desafio criativo e intelectual que, mesmo inerente a techne dramática, não pode ser subestimado. Fazer uma encenação do texto trágico mais antigo do berço ocidental do drama para uma transmissão durante uma pandemia global, então, é inegavelmente hercúleo! O papel do diretor e sua assistente certamente foi árduo e muito desafiador porque, eu ousaria dizer, há duas direções concomitantes que precisam estar em perfeita sintonia para que uma possa dar conta da performance no teatro e para que a outra possa fazer cortes pertinentes para envolver o público online. Acredito que as escolhas foram bem sucedidas apesar de os ajustes que o close impôs em várias dimensões do espetáculo. 


Como bem apontado aqui no blog em postagem anterior, precisamos nos atentar que a experiência do espectador no teatro é diferente daquela do telespectador. No caso do espectador, a direção do olhar é pautada não só pelas escolhas da produção e direção, mas também pela sua vontade própria. Porém, em um espetáculo filmado, o telespectador vê o que as lentes e os cortes dos produtores permitem. Dessa maneira, a perspectiva e apreciação do telespectador é moldada pelo diminuto recortado pelas lentes.


O objeto que mais intrigou os telespectadores parece ter sido a maquete de um templo – que eu imagino ser o Partenon – pelo seu tamanho tão reduzido diante da imensidão do teatro. Ela foi carregada ao palco pelas mãos do corifeu e permaneceu em cena no chão irradiando uma luz vermelha. A maquete foi, por vezes, erguida pelo corifeu enquanto ele proferia algumas falas. Acredito que uma maquete de tamanho reduzido a ponto de ser carregada nos braços do ator não tem impacto para a plateia local do mesmo jeito que ela tem para o telespectador que a vê em close quando erguida. 


Por que se teria escolhido esse artefato tão diminuto para fazer parte do cenário de um teatro tão grande? Há aqui algo de sagaz, pois ao se escolher um objeto de pequeno porte que simboliza o lugar mais fortificado e sagrado da terra do inimigo – não nos esqueçamos que toda a peça se passa em Susa e entre os persas! – se presentifica o local distante e, ao mesmo tempo, se coloca o tamanho que Atenas teria no imaginário persa. O pequenino templo nas mãos de um dos guardiões do palácio não poderia melhor simbolizar a hybris de Xerxes ao imaginar que tinha Atenas em suas mãos pelo seu poderio militar. Uma terceira possibilidade é a perspectiva de alguém que está distante de um local e o vê no horizonte. Essa imagem é uma ilusão de ótica, pois demarca o ponto como um objeto pequeno e palpável e essa é a perspectiva da rainha e do coro que estão longe do campo de batalha. Entretanto, o simbolismo da pequenez de Atenas versus a imponência de Susa via uma pequena maquete também serve o propósito oposto se pensarmos que a imagem da maquete em close aumenta a dimensão de Atenas. 


Além do diminuto templo, o figurino aponta na direção de escolhas que também favorecem os ângulos e cortes da filmagem. Há uma distinção de cor condizente com as diferenças de protagonismo dos personagens. Todos vestem branco exceto a rainha, que veste um bufante e volumoso vestido preto. Embora todos os homens vistam branco, o que diferencia Xerxes e Dario do coro são os bordados de suas vestimentas. O coro veste camisas com palavras em grego bordadas na cor preta enquanto Xerxes tem sua camisa bordada em vermelho com linhas soltas pendentes. Já Dario veste uma espécie de túnica com um esqueleto em bordado vasado preto, o que, ao meu ver, resolve, de maneira inteligente e simples, a representação do morto em cena. Entretanto, por se tratar de um bordado vasado, talvez a plateia das fileiras médias e altas não tenham podido apreciar esse detalhe de maneira tão evidente quanto os telespectadores. 


Crédito: Marilena Anastasiadou


Os bordados nas camisas do coro dialogam com a cena de necromancia, pois, aparentemente, os membros do coro leem, de forma ritualística, o que está escrito nas camisas depois de se despirem delas. Já os bordados da camisa de Xerxes são menos imediatos de se entender, mas o close da câmera e a referência ao número dos versos do texto de Ésquilo nos revelam que são os nomes dos mortos em combate. A simbologia do texto ganha muito mais força pela cor rubra e a soltura das linhas, corroborando para a descrição das vestimentas esfaceladas da personagem e com o sangue derramado pelos combatentes mortos. 


Os bordados, portanto, dão um toque refinado e sutil apreciável muito mais aos olhos diante da tela do que aos olhos que vislumbram o palco. O vestido da rainha não apresenta bordados, mas os antebraços e mãos foram pintados com inscrições em grego na cor preta (foto acima). Não foi possível entender se havia ali trechos do texto da peça como nos bordados dos figurinos das outras personagem. De qualquer maneira, há uma linha de criação no figurino que liga os bordados e as pinturas corporais da rainha. Mais uma vez, essas pinturas só são mais nítidas com o close da câmera. 


O cenário também segue uma linha mais minimalista com apenas cadeiras de braços altos alinhadas ao fundo do palco onde o coro permanece em algumas cenas e bastões ora usados para representar as armas dos guardiões e ora usados como remos em coreografia. 


A meu ver, as escolhas da encenação que privilegiam o diminuto de uma maquete que se ilumina presentificando o inimigo distante e o pontilhado de finos bordados no figurino em diálogo com o texto original e com movimentos coreográficos dizem muito sobre a dupla direção que acredito ter estado em curso nesse espetáculo. Embora os espectadores possam não ter apreciado os detalhes diminutos da mesma maneira que os telespectadores, a diferenciação nas cores do figurino e a luz vermelha que a maquete irradiava certamente cumpriram apelo visual análogo. O diminuto presente na encenação, portanto, foi um recurso funcional e apropriado para cativar o público online que não conseguiu desgrudar os olhos da tela durante toda a peça. O pequeno no monumental teatro se tornou grande nas lentes, assim como Atenas se mostrou enorme derrotando o seu maior inimigo. 


*Flavia Vasconcellos Amaral é atualmente pós-doutoranda do Departamento de Estudos Clássicos da Universidade de Toronto e investiga as estratégias narrativas nos epigramas gregos dialogados. A pesquisadora se graduou em grego antigo e se tornou Mestre e doutora em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo. Seus interesses de pesquisa são o gênero epigramático, a poesia helenística e sua recepção na literatura latina, epigrafia, a literatura erótica na Antiguidade, a morte na Grécia antiga e a leitura e escrita no mundo antigo. 



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