O Punicozinho (Colaboraçāo)


Peça: O Punicozinho (Poenulus), de Plauto

Tradução e adaptação: Beethoven Alvarez

Direção: Giovanna Sassi

Elenco: Wanderson Bernardo (Alopécio); Pedro Lopes (Roberval); Giovanna Sassi (Irmina); Eleusa Mancini (Testemunhas/Gidene)

Participações especiais: Beethoven Alvarez (Troquinho/Aderbal)); Marina Lacerda (Lobo); Heloize Fortunato (Darlene)

Realização: Laboratório de Estudos Clássicos (LEC-UFF), Orangotango Produções e Scuola de Cultura de Niterói

Única apresentação: 15 maio 2021

Plataforma: Zoom 

Duração: 65 minutos

Assista aqui.


Colaboração de Beethoven Alvarez*


Sinopse

O jovem Roberval está apaixonado por Irmina, uma jovem que foi raptada na infância em Cartago e que pertence agora ao bordel do cafetão Lobo, que impede o encontro do casal e atazana a vida do jovem. Com a ajuda do escravo Alopécio, Roberval pretende dar uma lição de uma vez por todas no sujeito. Irmina e a irmã Darlene, que sofre do mesmo destino, vão até o Templo de Vênus para pedir ajuda da deusa. Mal sabem todos que Aderbal de Cartago, o pai das moças e tio de Roberval, chegou na cidade e procura pelas filhas. É hoje que o safado do cafetão perde o pescoço, o tio cartaginês encontra as filhas e o sobrinho casa com a prima.


Sobre a peça

O Punicozinho (Poenulus, em latim), ou O Tio de Cartago, é uma peça cômica de Plauto encenada pela primeira vez em mais ou menos 189 a.C. É uma comédia romana sui generis: apresenta um personagem cartaginês, cujo tratamento é debatido até hoje, e, embora tenha um texto bem preservado, traz inúmeras dificuldades de edição e interpretação. Seu enredo é complexo e duplo, combinando partes de uma comédia de reconhecimento com elementos de uma intriga padrão. Há inclusive algumas passagens faladas em cartaginês, que causam um engraçado virundum tradutório no palco. O final da peça é incerto, pois os manuscritos apresentam três versões diferentes, mas o que importa é que no fim tudo acaba bem.


Notas de tradução e adaptação

Como fruto de um estágio de pós-doutorado, recentemente traduzi o Poenulus de Plauto. Teço aqui algumas notas sobre essa tradução e sua adaptação para leitura dramatizada.


Título: Poenulus em latim é o diminutivo de Poenus, que significa púnico, cartaginês. Daí uma possibilidade de tradução seria “O Cartaginesinho”, ou “O Pequeno Cartaginês”, mas O Punicozinho me pareceu que adicionaria uma camada cômica já de início.


Verso/Prosa/Rima: O texto do Poenulus que chegou até nós tem 1420 versos, que se alternam em aproximadamente 10 tipos de versos diferentes. A tradução procurou traduzir os versos em latim como versos em português, assim montei um esquema de equivalências, com, por exemplo, versos senários iâmbicos sendo traduzidos como dodecassílabos e versos septenários trocaicos que passam a duas redondilhas encadeadas e por aí vai. No prólogo e em algumas passagens, independentemente do tipo de verso, adicionei o efeito da rima para destacar ritmicamente algum trecho. Para a elaboração do texto que serviu como script da leitura dramatizada, os limites estruturais dos versos nas páginas foram removidos e o texto foi apresentado em prosa dividido pelas falas dos personagens, como é usual em scripts de teatro. Depois, naturalmente, a cada ensaio esse texto foi sendo ligeiramente remodelado para cada tipo de situação, para alguma facilitação de leitura, para assimilar improvisos e criar nova estilização. Contudo, não foi muito que se mexeu no texto em verso, que acaba ganhando novos ritmos, andamentos e tons na leitura particular de cada ator, que emprega suas estratégias interpretativas, que adiciona intenções e que dá voz e corpo ao texto. 


Corte de cenas e personagens: Em função do número de atores para leitura e para evitar que a apresentação durasse muito mais do que 1 hora, dois personagens foram removidos da trama. Um deles, Sincerônio, escravo do cafetão, teve sua cena resumida num monólogo de Alopécio (cena 9); já o soldado fanfarrão Antamônides foi retirado completamente. O corte do personagem do soldado ainda se prestou a outro objetivo, o de diminuir a quantidade de falas que contêm misoginia e outros comportamentos socialmente reprováveis. Antamônides é, além de misógino, um personagem preconceituoso, de discurso discriminatório e xenofóbico, que evoca os valores opressores de uma classe masculina por meio da força militar.   


Gags e anacronismos estratégicos: Algumas gags pontualmente foram adicionadas ao texto, ou logo no primeiro momento de rearranjo a partir da primeira tradução, ou no curso dos ensaios. Assim, Roberval chama Irmina para assistir a uma Netflix, Irmina diz que nunca teve um Chevette, Alopécio sugere que pode sair até Nutella da boca da jovem... 


Interjeições religiosas: Assim como expressamos algum espanto com um “Nossa Senhora!”, que vira “Nossa!”, “Nó!” ou “Nu!”, ou com um “meu Jesus!” ou com um mais palavroso “meu Deus do céu!”, os romanos também tinham seus Hercle, Edepol Pol, Castor etc., que viraram “Por Hércules”, “meu “Pólux do céu” ou um simples “Pó!”. Num sincretismo tradutório, vez ou outra personagens falam um “Minha Nossa Senhora da Etólia” ou um “Júpiter nosso, que estais no céu”.




Nomes dos personagens

Em sua maioria, os nomes dos personagens foram “traduzidos”, e não apenas aportuguesados. Em latim, esses nomes próprios eram formas latinizadas de nomes gregos e grande parte desses nomes eram cômica ou convencionalmente inventados. Alguns são “nomes falantes”, ou seja, nomes cujo significado diz algo sobre a personalidade ou ação do personagem no palco. Não busquei necessariamente recriar nomes gregos traduzidos, mas sim tentei inventá-los a partir de outras múltiplas referências onomásticas, sem muita preocupação formal. 


Agorástocles (Agorastocles) é o jovem apaixonado. Seu nome quer dizer “glória (kleos) da ágora”, ou “honra da cidade”. Aqui usei uma forma do teutônico de um nome que significa algo parecido: ROBERVAL significa “famoso pela glória” ou “valente e ilustre”. Vem de Hrodebert, que é a junção de hruot, que quer dizer “glória”, e berht, que significa “brilhante” ou “famoso”.


Milfião (Milphio) é o escravo esperto. Seu nome vem de μιλφός (milphós), que quer dizer “aquele que sofre da queda dos cílios” (é isso mesmo!). Alopécia é o nome da doença associada à queda dos pelos corporais. Achei que podia funcionar então um ALOPÉCIO.


Adelfásia (Adelphasium), a jovem livre capturada e escravizada, tem um nome que significa literalmente “irmãzinha” (que vem de adelphe, irmã). Irma é um nome de origem germânica que é quase homofônico de irmã. Daí a variação IRMINA me pareceu funcional. 


Anterástile (Anterastilis, de ἀντεραστής) significa “rival”, “rival no amor” ou “aquela de amor enciumado”. Ela é a irmã de Irmina que “disputa” amor e espaço. Havia pensado num homofônico SILMARA ou ainda ENSILMARA, porém, porque as irmãs muitas vezes se chamam de “minha querida”, preferi um irônico DARLENE, que vem de darling, (“querida”, em inglês).


Lico (Lycus), o nome do cafetão, quer dizer LOBO em grego, então este ficou sendo o nome em português. 


Colibisco (Collybiscus) é o nome do capataz de Agorástocles, seu nome significa literalmente “pequena moeda", “pequeno trocado”, daí TROQUINHO. Ele é o escravo disfarçado que vai enganar o cafetão e lhe tirar todo dinheiro.


Hanon (Hanno) é o nome cartaginês do tio púnico e parece que significa “Deus é misericordioso”, ou coisa parecida, o que faz sentido, uma vez que o personagem é muito respeitoso aos deuses. ADERBAL significa “cultor de Baal” ou “cultor do senhor”. O nome é de origem fenícia (cartaginesa), então achei que podia combinar e ainda faz um par sonoro com o nome do sobrinho Roberval.


Antamônides (Antamonides), personagem cortado da leitura, tem o nome que significa algo como “filho daquele que se defende”. Ele é o soldado fanfarrão que se glorifica de feitos militares falsos (equivalente a se vangloriar “de seu perfil de atleta”) e é extremamente machista e tosco. Associação fácil com o codinome CAPITÃO.


Sincerasto (Sincerastus), outro personagem cortado, é o escravo do cafetão, cujo nome vem da raiz de “sincero”, então só modifiquei um pouco para parecer mais com um nome próprio: SINCERÔNIO. Porém, como o personagem não aparece, Alopécio brinca que ele poderia se chamar FALASTRÔNIO, por falar tanto do patrão abertamente.


Jahon (Iahon) e Ampsigura (Ampsigura), os pais cartagineses do jovem, passaram para JARBAS e GETÚLIA. Antidamas (Antidamas), o pai adotivo, virou SEU DAMASO, mas GIDENE (Giddenis) se manteve como nome da escrava de Aderbal.


Comentário sobre a apresentaçāo

A ideia de uma leitura dramatizada d’O Punicozinho (Poenulus, em latim) já passava pela minha cabeça antes da pandemia de Covid-19. Uma apresentação poderia ser realizada num auditório da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, como fizemos em 2018 com a leitura de “Um Deus Dormiu Lá em Casa”, de Guilherme Figueiredo. Contudo, todas as dificuldades impostas pela necessidade de isolamento social e a suspensão das atividades presenciais na universidade deixaram tudo em suspenso. Então, depois de um ano, após ter realizado pelo LEC-UFF mais de 100 atividades científicas online, entre palestras, simpósios, seminários etc., decidi propor à Eleusa Mancini realizarmos a montagem da leitura pelo Zoom. Prontamente Eleusa topou e convidamos Giovanna Sassi, que depois assumiria a direção. Nós três, junto com Pedro Lopes, que também logo integrou o grupo, havíamos trabalhado coletivamente já no “Um Deus...”. Heloize Fortunato, minha orientanda e mestranda em Estudos de Linguagem, e Marina Lacerda, mestranda da UFG, em Goiânia, que assistia como ouvinte minha disciplina de Teatro Romano na graduação, integraram a trupe, junto também com Wanderson Bernardo, excelente ator niteroiense, que deu vida ao escravo esperto da peça.


Nosso principal propósito da leitura sempre foi o de trazer o teatro de Plauto ao conhecimento do público, especialmente, com uma peça tão desconhecida como O Punicozinho. Um motivo subjacente também era pôr à prova o texto da tradução para saber se funcionaria, ou seja, se seria engraçado. Não é difícil não rir de uma comédia de c. 189 a.C., dum teatro altamente convencional, cheio de códigos próprios, que coloca romanos antigos interpretando personagens gregos e cartagineses que moram numa cidade da Etólia e que retrata situações comicamente estilizadas da “vida comum” de um povo cuja sociedade poderia ser descrita por nós como escravista, machista e imperialista (predicações com algum grau de anacronismo, tenha cuidado).


O enredo se vale de circunstâncias típicas que eu poderia dizer que incluem tráfico de pessoas (sequestradas ainda crianças numa cidade onde hoje fica a capital da Tunísia), comércio de corpos femininos, roubo, fraude e violência física contra pessoas escravizadas, com pitadas de abuso e imoralidade. Como rir disso? 




Fato é que, pelo Zoom, não temos como saber como ou quanto o público se divertiu, contudo, na interação final pelo chat e por vídeo, diversas pessoas dos mais de 100 espectadores elogiaram o resultado e disseram ter rido e gargalhado às vezes. Daí repito minha pergunta não tão apenas retoricamente: como ou por que elas riram?  


Uma chave de resposta é pensar que a comédia romana não era (e não é) um teatro dramático, cuja performance tem o objetivo de contar uma história. Não. A comédia romana é, como disse Florence Dupont, um “teatro do jogo”, que celebra o ritual da própria performance, que se diverte (e inverte) a possibilidade da seriedade das coisas. O público, nesse teatro, é um “assistente” em duplo sentido: ele assiste ao espetáculo de fora do palco, justificando o espetáculo em si, mas, ao mesmo tempo, assiste a performance ritual com sua participação, que se traduz pelo respeito a seu papel que é manter o silêncio e a boa disposição; a plateia, como ajudante do jogo cênico, faz também parte dele.


Um “teatro do jogo” é um teatro ritual, ou antes, um teatro que faz parte de um ritual. A potência ritual e performática do texto da comédia romana talvez ajude a explicar por que conseguimos rir quando assistimos a performances como O Punicozinho. Mesmo uma encenação que segue outros códigos, que se realiza em outros lugares, de outros modos, ela evoca o ritual do próprio teatro; a encenação e o texto convidam o espectador novamente a se colocar como assistente, a reforçar o papel do jogo, a entrar no jogo e não levar a sério o enredo. 


Entendo que isso que chamei de “potência ritual e performática” tem algo a ver com a ideia de materialidade e coisidade do texto, como argumenta Alison Sharrock. A professora, falando da leitura (não da leitura encenada) da comédia, argumenta que haja uma materialidade e uma “coisidade do humor plautino” que intensificaria o “paradoxo da leitura da literatura dramática”, uma leitura que daria vida à coisa em si, ao objeto que é o texto, o que, por um processo de “‘semiotização do objeto’, [...] suprime a função prática dos fenômenos em favor de um papel simbólico ou significante”. Pegando o gancho, eu iria além de Sharrock: essa materialidade, essa coisidade do humor da comédia romana (não só de Plauto), numa leitura dramatizada ou numa encenação, tem a capacidade, também paradoxal, de ser performativa na sua função de deslocar significantes. O texto, em sua performance semioticamente transportada, mesmo pelo Zoom, numa leitura dramatizada em 2021, evoca o teatro do jogo, evoca o ritual a que pertence (ontem e hoje). O texto da comédia é só mais um elemento da performance e não pode existir sem ela. O argumento de Sharrock, mesmo quando valoriza apenas a leitura (silenciosa) do texto, aponta para uma imaginada fisicalidade da performance recriada pela leitura. 


Aqui evoco o sentido etimológico da palavra performance, que não significava inicialmente “a execução de uma ação” ou “a encenação de uma peça”; performance, do francês par + fournir, tinha um sentido processual de “se completar algo”, de “se realizar algo até o final”. Com isso em mente, penso que o texto da comédia romana só se completa, só se realiza até o final com a performance, em qualquer circunstância. 


Ao final, o público riu e se divertiu, mas não riu necessariamente de escravos maltratados, meretrizes à venda e cafetões traficantes de mulheres, mas riu da performance, da atuação dos atores, dum ridículo anacrônico; riu por assistir em cena, mesmo pelo Zoom, à realização de um texto antigo, antiquado às vezes; a plateia virtual se divertiu porque se sentiu parte daquele jogo, e, como a plateia antiga, precisava manter o silêncio (agora online) e a boa disposição para que cada um atuasse como um “juiz justo”. Se é pelo Zoom ou num teatro tradicional de palco italiano, se é num auditório da UFF ou num teatro romano em Sársina, a performance ainda tem o poder de dar novos sentidos a velhos objetos. 



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Beethoven Alvarez é Professor Adjunto de Língua e Literatura Latina na Universidade Federal Fluminense (UFF). Docente da Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PosLing/UFF). Realizou estágio de Pós-Doutorado (2019/2020) na University of St. Andrews (School of Classics). Possui Doutorado em Linguística (Estudos Clássicos) pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com período sanduíche no Corpus Christi College (University of Oxford). Possui Mestrado em Letras Clássicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem interesse principalmente em: teatro romano antigo, comédia romana, métrica latina arcaica, tradução poética e tradução teatral.



Veja também o post sobre a leitura dramática de “Um deus dormiu lá em casa”.

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