"UM DEUS DORMIU LÁ EM CASA" de Guilherme Figueiredo – Leitura dramatizada


Tema: comédia “Anfitrião”, de Plauto 
Adaptação: Beethoven Alvarez 
Pesquisa: Beethoven Alvarez e Lucia Cerrone
Direção: Eleusa Mancini
Elenco: Pedro Lopes, Giovana Sassi, Eleusa Mancini, Juliano Antunes e Beethoven Alvarez.
Temporada: 12.09.18
Local: Universidade Federal Fluminense (UFF), Campus do Gragoatá, Auditório Macunaíma, Niterói (RJ)
Duração: 60 min.


A peça brasileira, de 1949, inverte a situação da peça latina. É o general Anfitrião que se apresenta como se fosse Júpiter transmutado em Anfitrião, numa tentativa de evitar que se realize a profecia de que um homem dormiria em sua casa na primeira noite em que ele iria para a guerra contra os teléboas. O texto brasileiro faz o jogo do duplo, com Anfitrião e Alcmena como um casal e o escravo Sósia e a escrava Tessala formando outro.

Comentário

Por Beethoven Alvarez*

Como espectador e leitor de comédias, escrevo esse comentário de um lugar diferente: da coxia. No dia 12 de setembro, como parte do encerramento de XXV Seminário de Estudos Clássicos da UFF (Niterói, RJ), subiu ao palco do Auditório Macunaíma, no Instituto de Letras, uma leitura dramatizada da premiada peça de Guilherme Figueiredo, “Um Deus Dormiu Lá em Casa”. E eu estava na coxia. Além de ter feito a adaptação do texto para caber em uma hora de leitura e dar mais fluidez a algumas cenas e falas, eu ainda participaria lendo algumas falas. Essa experiência de trocar de papel foi riquíssima e consigo lembrar até agora da sensação muito boa de, estando numa salinha fora do palco, escutar os risos e gargalhadas da plateia. Éramos eu, os atores, Guilherme Figueiredo e toda uma herança clássica fazendo uma meninada (alguns ali nasceram já depois dos anos 2000!) se divertir pra valer.

Motivado por um curso de Matrizes (culturais e literárias) Clássicas que dei na graduação no primeiro semestre e, depois, por outro curso de Teatro Romano (de comédia, de fato) que estou ministrando no segundo semestre, eu queria colocar em cena alguma comédia de tema clássico. Descobri que, em 2015, houve uma leitura dramatizada de “Um Deus Dormiu Lá em Casa” no Teatro Municipal de Niterói. E isso colocou uma pulga atrás da minha orelha. Liguei para Eleusa Mancini, que havia sido minha aluna na graduação de Latim e que, além de diretora, é atriz, roteirista, radialista, professora de técnica vocal, técnica de leitura e interpretação, e propus fazermos uma leitura nossa do “Deus”, que naquela hora virou o “nosso Deus” (esse foi o nome do grupo do Whatsapp que deram).

Eleusa Mancini é uma realizadora especial no círculo fluminense. Por exemplo, como idealizadora e diretora, levou o muito bem-sucedido espetáculo “Shakespeare, William”, depois de várias temporadas em Niterói, a ser apresentado no ano passado no Festival Internacional de Londrina, recebendo ótima crítica. Ela topou, reuniu um grupo próximo de atores que também topariam a empreitada e aí começou tudo.

Como nossa diretora, ela seria ainda a escrava Tessala. Como Sósia/Mercúrio, o fabuloso Juliano Antunes, também conhecido como Felisberto do “Altas Horas” (procurem no YouTube!), prolífico e talentoso ator que já esteve nos palcos de Nova York com Gerald Thomas no La MaMa. Para o general tebano, o grande Anfitrião/Júpiter, Pedro Igor, que partilha da felicidade de também ser egresso do curso de Latim da UFF. Pedro é ator, dublador e professor de LiterArte. A seu lado, sua pequena Alcmena, Giovana Sassi, uma jovem atriz, que, entre tantos trabalhos, estrelou recentemente o musical “Capitães de Areia” no Teatro Popular de Niterói, e, que além de cursar duas graduações ao mesmo tempo, é habilidosa jogadora de Futsal (dizem!).

Nas reuniões para leitura e discussão do texto, contamos com a fundamental contribuição de Lucia Cerrone, grande mestra do teatro fluminense, que esteve muito tempo à frente do Fórum de Artes Cênicas de Niterói e da Associação Niteroiense de Teatro. Vale destacar que, por sua iniciativa, se realizam até hoje os Ciclos de Leituras Dramatizadas no Teatro Municipal de Niterói, que já vão para sua 10ª edição.

Assim, estávamos ali, com um texto de 1949! sobre um mito que volta no tempo aos 700 e pouco antes de Cristo...  A adaptação mais conhecida do mesmo mito, que influenciou sobremaneira a criação de Figueiredo, é a de Plauto, de 200 e tal antes de Cristo. Não ajudava muito. Aí Lucia me perguntou: “Por que Guilherme Figueiredo?”, “Por que ‘Um Deus Dormiu Lá em Casa’?”. E a resposta era: “Porque é engraçado”! E porque, de alguma maneira, aquele texto continua fazendo sentido e precisava ser acessado para ser reatualizado. O tempo todo o objetivo era fazer uma leitura divertida, mas, ao mesmo tempo, trazendo a um público muito jovem um pedaço da história do teatro brasileiro e universal. 

A peça, originalmente, foi encenada em 1949, no Teatro Copacabana, com estreia em 13 de dezembro daquele ano. Guilherme Figueiredo recebeu depois, pela autoria, os prêmios da Academia Brasileira de Letras (ABL) e da Associação Brasileira de Críticos Teatrais (ABCT). A direção contou com Silveira Sampaio, que recebeu Medalha de Ouro da ABCT. Foram premiados, ainda, o assistente de Direção, Armando Couto, o cenografista e figurinista, Carlos Arthur Thiré, o sonoplasta, Jorge Coutinho, a companhia como um todo pela produção, e o elenco, Armando Couto (Sósia), Paulo Autran (Anfitrião), Tônia Carrero (Alcmena, que recebeu também o prêmio da Associação de Críticos Cariocas) e Vera Nunes (Tessala). Nessa data, Paulo Autran fazia sua primeira peça como ator profissional. Mais tarde, o texto foi dedicado a Tônia Carrero.

Guilherme Figueiredo, embora nascido em Campinas e, depois, adido cultural em Paris, era, talvez, como dissera Silveira Sampaio, “o mais carioca dos cariocas”. Esse é tom da sua adaptação do mito do nascimento de Hércules, a gozação carioca. O mito grego, de fato, trata do nascimento do herói grego Héracles/Hércules, que fora gerado por Alcmena, esposa de Anfitrião, num conúbio sexual com Zeus, que tomara a forma de seu marido para enganá-la. Na sua recontagem do mito, assim como Plauto, Figueiredo prefere dar ênfase à “cornitude” (aqui, simulada) de Anfitrião e às sugestões (embora um pouco anódinas) de infidelidade de Alcmena, tudo isso num ambiente grego, com clismos e tudo, mas com uma atmosfera carioquíssima daquele tempo, em que Anfitrião mais parece um nouveau riche e Alcmena uma coquete(Indico aqui a leitura do capítulo do querido Rodrigo Gonçalves, "Guilherme Figueiredo e a rescrita radical do mito de Anfitrião", no livro "A comédias e seus duplos: o Anfitrião de Plauto", organizado pelo próprio Rodrigo. Não posso deixar de fazer menção ao fundamental grupo de leitura dramatizada de textos clássicos, o inspirador "Giz-en-scène" da Unesp de Araraquara, do qual se pode assistir a uma muito engraçada leitura da mesma peça, realizada há alguns anos, também no YouTube.)

Na adaptação para uma Niterói de 2018, Anfitrião virou “morador de Icaraí” e Alcmena não parece estar blefando quando lembra que Creonte pode amar “como um colegial” ou quando diz que prefere “um mais moço”. Sua revolta, quando descobre que Júpiter "desceu do Olimpo" não para se deitar com ela, deve ter espantado também muitas pessoas na plateia: "Como assim? Veio até aqui e vai ficar só de papinho?".

A leitura começou um pouco insegura, mas foi ganhando confiança à medida que a plateia ria e interagia mais. No fim, a público estava muito compenetrado, gargalhando muitas vezes, mas atento aos momentos menos burlescos. Tanto a ironia fina de certas falas de Alcmena quanto a intricada trama de Anfitrião, culminadas na última cena dos dois, de discussão acalorada e cheia de vai-e-véns retóricos, tudo isso parece ter prendido a concentrada atenção do auditório.

O texto mantinha certo distanciamento vocabular e morfológico: foram mantidos muitos “tu” e “vós” e as formas flexionadas dos verbos nessas pessoas, embora “você(s)” e as formas de 3ª pessoa do verbo aparecessem concorrentemente, sem nenhum problema. Traços da informalidade da época ficaram como tesouros em forma de palavras: Júpiter era um bilontra, o filho de Demêneto, um pelintra, e Anfitrião cuspia sua raiva gritando um sonoro “Bolas!”.

Certas (poucas) gags foram inseridas, como quando, no início, Anfitrião diz que não acredita nos deuses, mas sim na estratégia, “do grego, estrategía”. O público reconheceu na hora a brincadeira.

Cenas inteiras e grandes partes de outras cenas foram cortadas, mas o resultado final (embora eu seja suspeito para falar) se manteve uniforme e com unidade. O texto é muito bem amarrado. As falas nunca são despropositadas e sempre encontram eco nas cenas posteriores. Recurso largamente utilizado no texto de Figueiredo que foi, algumas vezes, diminuído, foram as acumulações de três elementos, que parecia empolar o texto para torná-lo grandiloquentemente cômico. Os monólogos de entrada e saída também sofreram cortes significativos, retirando grande parte do conteúdo mitológico, que faria o texto mais parecer um verbete da Wikipedia.

Por fim, com atuação incrível, mesmo considerando o pouquíssimo tempo de ensaio, Alcmena conseguiu ameaçar e tirar o sossego de Anfitrião, com alguma audácia que faria os mais velhos dizerem que a moça estava muito “pra frentex”, mas o que hoje ganha muito eco num discurso e numa postura feminina que busca maior liberdade e igualdade; o general-deus e corno de si mesmo estava ótimo no único papel que sabe fazer “o de marido enganado”, um verdadeiro “homem tradicional” fazendo o que sabe fazer de melhor: passar vergonha; Tessala estava terrível na sua irredutibilidade, marcada pelo sincero monólogo que lamenta o infortúnio da escravidão; e Sósia, impagável no Mercúrio cheio de falta de coragem, característica típica daquele que prefere se omitir do combate e apenas levar pequenas vantagens, dando azo então, como lembra o chefe tebano, a toda forma de tirania.

Assim, com um texto buscou estar atento à elaboração minuciosa de Figueiredo e um elenco talentoso de atores profissionais e dedicados (e eu), a leitura conquistou e fez rir um público muito especial, o de pessoas que acreditam na universidade pública, na cultura clássica, no teatro e no humor!  (Beethoven Alvarez)





 *Beethoven Alvarez é Professor Adjunto de Língua e Literatura Latina, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui Doutorado em Linguística (na área de Estudos Clássicos) pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com período sanduíche no Corpus Christi College (University of Oxford). Possui Mestrado em Letras Clássicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Hoje tem interesse principalmente em: teatro romano antigo, comédia romana, métrica latina (clássica e arcaica), filologia clássica, versificação, estudos da tradução e tradução poética.