Crônica de passagem: DISCORDANDO DE NELSON DE SÁ



Quem sou eu – não é?! – diante de Nelson de Sá? Ninguém. Mas todo mundo tem direito a dar pitaco, e eu vou. 


Têm sido poucas as publicações na chamada “grande imprensa” sobre o teatro nestes tempos pandêmicos. Faz sentido. Não reclamo. Se antes saía mais coisa nas “páginas” dos jornais era porque ou grupos prestigiados ou artistas renomados tinham ali uma boa vitrine, tipo, promoção de graça. E tá certo: é assim mesmo que funcionam a reportagem e a crítica de cultura.


O que acontece agora – me parece – é que as apresentações online carecem, do ponto de vista dos críticos, do “prestígio” que as encenações presenciais trazem consigo. “Prestígio” como quem diz “herança da tradição teatral como arte”. Então, quando aborda o teatro online pandêmico, a crítica pisa em ovos entre descartar essas práticas como não artísticas e aceitá-las como corajosas tentativas de remediar a lacuna das salas fechadas.


Sobre o debate corrente na crítica teatral no país, sugiro ver os vídeos do projeto “Crítica Isolada”.


Para entender o que eu quero comentar nesta “crônica de passagem”, tem que ler a análise de Nelson de Sá da Folha de S. Paulo: “Ilusão de que o teatro virtual é uma nova arte se esgotou na pandemia” (6 maio 2021).



Bom, aí é que está: por que “nova arte”? A mesma arte, a do ator com um papel dramático, ao vivo, mesmo que mediada por uma tela. É paradigmático o espetáculo “12 pessoas com raiva” (imagem acima), sob a direção de @juracydeoliveira, adaptação da peça “Twelve Angry Men” (1954), de Reginald Rose, para a plataforma Zoom. O mosaico permite acompanhar simultaneamente o jurado que tem a palavra e as reações faciais dos demais. 


Embora não seja uma obra da Antiguidade, escopo do blog, eu vi duas vezes online, ao vivo: na primeira (11 ago.2020), pela curiosidade da descoberta, na segunda (21 dez.2020), pelo prazer da experiência. O timing do texto funciona muito bem naquele formato, os artistas entendem como a corporalidade é recortada pela câmera (E há duas ocasiões de movimento de corpo inteiro!), o cenário claustrofóbico da sala dos jurados é replicado nos quadradinhos que parecem uma prisão, da qual um ou outro quer se livrar o mais rápido possível.


Eu já vi “Doze homens e uma sentença”, noutra versão, no teatro presencial, e foi muito bom, mas arrisco dizer que o Zoom parece muito indicado para sobrelevar o texto, os argumentos de cada jurado, as expressões faciais que podem se perder na amplitude do palco italiano ou de arena. Lembro que a peça virou filme em 1957, direção de Sidney Lumet, e parte do material promocional foi essa imagem abaixo. Coincidência?!



Aí tem toda uma discussão sobre o “teatro possível” nos tempos pandêmicos como não sendo o “teatro ideal”. Bom, é certo que não foi/não é automática a aceitação de diferentes formas de assistir ao que pode ser entendido como teatro. Por vezes, não é nem mesmo “assistir” na acepção de “ver”. Uma das primeiras iniciativas dramatúrgicas decorrentes do isolamento foi a inusitada criação “Tudo que coube numa VHS”, do grupo pernambucano @Magiluth. Começou em maio de 2020, eu vi em 19 de julho de 2020. Tá documentado:




O que eles chamaram de “experimento sensorial em confinamento”, a partir da concepção do Giordano Castro, um dos membros da trupe, foi uma das experiências teatrais mais fortes no período pandêmico. Primeiro, porque eles invadem (no bom sentido) seu celular, numa dramaturgia que é para todos e só para você, já que um dos rapazes tá do outro lado da linha (no meu caso, foi o Mario Cabral), te guiando numa rememoração de momentos de uma relação amorosa cheia de percalços: é pra ler, é pra ouvir, é pra ver. Teve também, na sequência, “Todas as histórias possíveis”, no mesmo esquema, só que outro, na mesma história, só que outra. Eu vi em 13 de setembro de 2020, de novo, por acaso, com o Mario Cabral. Já houve várias temporadas e não vejo como é que uma singularidade dessas possa ser enterrada depois de passada a pandemia.


Eu teria muitas peças mais pra comentar, mas imagino que as pessoas não tenham paciência, nos dias de hoje, de ler nada longo, como eu não tenho. Por isso, vou recuperar apenas mais uma dramaturgia surpreendente sobre a qual escrevi aqui bem recentemente. 


E saliento que foi “bem recentemente” pra contra-argumentar que não, ainda não cansei de ver teatro virtual. Nelson de Sá diz, a certa altura, que os esforços do povo de teatro “exigiram boa vontade e condescendência do espectador regular a ponto de levar à aversão”. Concordo e discordo. Concordo: boa vontade e condescendência são premissas, porque não dá pra controlar, por exemplo, a estabilidade da conexão – uma transmissão ruim chateia, incomoda. Discordo: que se tenha chegado à aversão ao teatro virtual, até porque pode haver ainda boas surpresas. Bom, aqui vai um reparo sobre o termo “regular” – eu não sei bem se ele se refere ao espectador que costumava ir “regularmente” ao teatro ou se, por outro lado, está excluindo os críticos, pesquisadores, profissionais, que teriam mais resiliência com o teatro virtual, e salientando que o espectador comum, leia-se, “regular”, estaria já enfadado. Acontece que tem gente que está experimentando o teatro online agora, um ano já de pandemia.



A questão talvez seja discutir não o teatro pandêmico, mas a dramaturgia da virtualidade. Quando eu dei de cara com “Como devo chorá-los” foi experimentar algo que não era “12 pessoas com raiva” nem era “Tudo que coube numa VHS” nem nada do que eu tinha visto antes pela tela do computador. 


Essa turma que se reuniu e assina o que chama de “dramaturgia” (Bernardo Marinho, Chandelly Braz, Juliana França, Marina Vianna, Pedro Henrique Müller e Zahy Guajajara) ousou dizer que cabe a cada espectador montar a sua versão de “Antígona” a partir de leituras feitas por esses artistas das peças de Sófocles, Bertolt Brecht e Anne Carson. Eles deixam no site do espetáculo fragmentos de textos, vídeos, áudios, imagens. Não é ao vivo, mas essa é uma provocação de interação com o trabalho dramatúrgico maior do que participar de um jogo de detetive, como “Caso Cabaré Privê” (visto em 26 set.2020), ou de uma enquete conduzida por um suposto robô, como “Uma peça para salvar o mundo” (vista, parcialmente, em 8 mai.2021). 


“Como devo chorá-los” continua – digamos – em cartaz até o final deste mês. Acesse o site pelo computador com fones de ouvido. É melhor. Experimente.


Pra arrematar a conversa:

essas dramaturgias que permitem uma experiência virtual em plena sintonia com uma proposta teatral específica e diferente daquela do palco & plateia não são uma “nova arte”. É a mesma arte que, mesmo parecendo outra porque imbricada noutra situação, faz o teatro mais iluminado, não mais apagado. 

Desculpe-me a ousadia, Nelson de Sá.

Renata Cazarini



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