TRAGÉDIA EM GOTAS
Peças: Orestes, Electra, Medeia, Íon (Eurípides)
Tradução: Truπersa, sob a direção de Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa
Dramaturgia e Produção: Truπersa
Direção: Anita Mosca
Elenco: Alice Mesquita, Amanda Bruno, Anita Mosca, Beatriz Novaes, Guilherme Mello e Sara Anjos
Estreia: 03.09.19
Local: Cine-Theatro Central (Juiz de Fora) Programação cultural do XXII Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
Assistido em: 03.09.19
Temporada: 04.09.19 (UFRJ) e 05.09.19 (UFF-Niterói)
Duração: 60 minutos


Veja nosso post anterior sobre a peça e o projeto de tradução da Truπersa.


Sinopse: 
“Tragédia em gotas” é um espetáculo que pretende levar você a visitar uma exposição de quadros trágicos pintados no século V a.C. por Eurípides. Expostos, como numa galeria, eles escancaram o submundo de maldade e crime. São recortes de textos que tratam de relações afetivas esfaceladas. Personagens em conflito extremo entram, relatam seus atos passados e planos futuros (matricídios, incestos, traições, estupros, homicídios...) e saem. Suas dores psíquicas, corporais e afetivas podem ser espelhos de traumas vividos por muitos. O horror da cena deve levar o espectador a refletir sobre os rumos das desmedidas na perspectiva da vítima e do algoz em cada quadro. A cena se abre com a perplexidade da grandeza e pequenez da glória humana. Electra entra, descreve os crimes de sua família e disputa com o irmão, Orestes, a autoria do matricídio perpetrado. Condenados, esses dois irmãos, com a ajuda do amigo e amante Pílades, invocam - do reino dos mortos - Agamêmnon, pai assassinado pela esposa Clitemnestra, mãe de ambos. Nada acontece, em lugar de Agamêmnon, surge Medeia, vinda da Cólquida, para vingar a traição de Jasão. Ela planeja o seu famigerado filicídio. Mas Orestes rouba o espaço e brilho da neta do sol. Ele e seu amado Pílades resolvem: antes matar que morrer. Irrompe, porém, Creúsa que denuncia Apolo (yes, me too!), o deus devasso deve ficar exposto diante de todos. Sua denúncia, contudo, cai no vazio e Electra, que surge de um passado remoto de antes do espetáculo, planeja com requintes de frieza, o matricídio. No giro da fortuna, tudo pode começar novamente. (Divulgação)

 Tereza Virgínia

COMENTÁRIO
A aposta da Truπersa em sequenciar fragmentos das peças de Eurípides dá um trabalho danado ao espectador. Mesmo ao especializado, como era boa parte do público na estreia de “Tragédia em gotas”, no Cine-Theatro Central, em Juiz de Fora (MG), que recebeu a programação cultural do XXII Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. O espaçoso e belo teatro acolheu mais de 600 espectadores. Alguns deles tentavam, ao saírem, associar as falas do elenco às peças clássicas conhecidas. Não foi fácil. 


É um quebra-cabeças o teatro de fragmentos. Fazer o encaixe das peças – irresistível o trocadilho! – requer habilidade e paciência, sem falar de conhecimento. Assim, achei conveniente publicar mais acima a sinopse fornecida pela Truπersa. Na verdade, ela deveria ter sido fornecida a todos os espectadores previamente, como se fosse um programa de ópera. O texto dá um norte para acompanhar a rota perseguida pela trupe. Sugiro que seja fornecido em todas as apresentações.


Mas e se, mesmo com a sinopse, esses nomes todos não disserem nada ao espectador? O teatro deve ser uma experiência que prescinda de explicações. Outros elementos – performance, figurino, cenário, luz, som – devem suplantar o texto. Afinal, não se trata de literatura acomodada ao palco.





Me parece que é aí mesmo que reside o maior desafio: se o espectador se vê limitado na sua apreciação das cenas independentes das quatro peças de Eurípides referidas pela trupe (Orestes, Electra, Medeia, Íon), ele espera o desenrolar de uma trama, o que o teatro de fragmentos nem sempre se propõe a oferecer.


Penso, de imediato, em Heiner Müller e em sua “MedeaMaterial” ou em “Hamlet Machine” – dois clássicos do dramaturgo alemão bastante encenados no Brasil. No caso da primeira, para não me estender muito na exemplificação, tem-se três cenas justapostas: um locus horridus; um diálogo entre Medea, a Ama e Jasão; um monólogo de Jasão. As cenas, como diz Müller, podem ser representadas simultaneamente. Veja nosso post sobre montagem recente de “MedeaMaterial”.

Nisso reside o maior valor do texto em fragmentos no teatro: ele é muito maleável. Então, não, não se trata de uma condenação do fragmento. Mas como apreciá-lo?


Um momento alto de “Tragédia em gotas” é quando a atriz italiana e diretora da peça Anita Mosca entra em cena como uma majestosa, imponente Medeia, em longo vestido de amarelo ouro, evocando o avô Sol e, por consequência, a carruagem do desfecho “deus ex-machina” da peça grega. 


Anita Mosca


Mais interessante ainda do que sua presença no palco, Anita Mosca fala com ligeiro sotaque, associado imediatamente à fala “bárbara”, visto que os demais atores são de expressão “brasileira”. Anita-Medeia se dirige ao coro de “amigas”, as mulheres de Corinto, representadas por três personagens que usam as belas máscaras elaboradas por Ronaldo Alves. 


De “amigas”, elas se tornam “erínias”, com a entrada de Orestes. A transição de uma peça a outra é transparente e elegante, cheia de significado porque ambos personagens – Medeia e Orestes – são assassinos de familiares, alvos preferidos das Erínias. Outras transições ao longo do espetáculo são enigmáticas.




Dois momentos adicionais que merecem comentário têm caráter de atualização do contexto. 

Numa das cenas, Pílades adentra o palco numa bicicleta e dialoga com Orestes, desenvolvendo um balé de aproximação física dos personagens masculinos que evidencia sua relação homoafetiva. No final, Pílades aciona luzes multicores nos faróis da bicicleta e a arquitetura de luz segue o jogo que evoca o arco-íris da bandeira LGBT+. 

Logo depois, a manifestação de várias personagens femininas, puxadas por Creúsa, denunciando Febo Apolo com o lema “Me too!” abre espaço para também Orestes dizer que a culpa deve recair sobre o deus. Esse Febo Apolo é o do “Íon”, um deus que mente e profere oráculos enganosos, como salienta Tereza Virgínia no texto “A tragédia grega – consciência e aceitação do limite como meio de alcançar o conhecimento” (2000). Leia aqui.


Ousando pôr em duas orações a proposição de Tereza Virgínia nesse artigo, a tragédia é a experiência da realização da desmedida potencial do ser, que é conter em si o divino. Fala-se em “experiência”, não em “compreensão”.  A experiência no espaço teatral há que ser a do divino perpassando nosso corpo coletivo de espectador. Assim se realiza o teatro. A Truπersa está nesse caminho.
 (Renata Cazarini)