OS UM E OS OUTROS
Mito: batalha entre Horácios, por Roma, e Curiácios, por Alba Longa
Texto: livre recriação de “Os Horácios e os Curiácios”, de Bertolt Brecht
Tradução: Mário da Silva (Editora Paz e Terra)
Concepção, organização e curadoria textual: Cibele Forjaz, Cla Mor e Gabriel Máximo
Concepção: Coro de Criadores da Cia. Livre e da Cia. Oito Nova Dança
Direção geral e encenação: Cibele Forjaz
Elenco: Adriano Salhab, Cibele Forjaz, Fernanda Haucke, Fredy Allan, Gisele Calazans, Lu Favoreto, Lucia Romano, Marcos Damigo, Roberto Alencar e Vanessa Medeiros (jogadorxs)
Coro convidado do povo Guarani M’Bya [em revezamento]: Jerá Poty Miri, Jerá Guarani, Tatarndy Germano, Karai Negão, Karai Tiago, Poty Priscila e Karai Tataendy Ricardo
Músicos em cena: Gabriel Máximo e Ivan Garro
Composições de trilha original, direção musical e arranjos: Adriano Salhab e Guilherme Calzavara
Duração: 120 min.
Temporada: 05.09 a 22.09.19
Assistido em: 15.09.19
Local: Sesc Pompeia | SP
Sinopse
Espetáculo criado a partir de uma releitura da peça Os Horácios e Os Curiácios, de Bertolt Brecht. Do mesmo modo que Brecht realiza uma releitura de fatos históricos da Roma Antiga para levar aos palcos a ascensão do nazismo na Alemanha, a Cia. Livre e a Cia. Oito Nova Dança utilizam o roteiro do dramaturgo alemão para a criação de um diálogo entre a história contada por Brecht e a luta dos povos ameríndios no Brasil contemporâneo. (Divulgação)
Nota bene
O espetáculo teve uma abertura de processo de criação em abril de 2019, no Museu do Ipiranga, sob o título “Morte e Dependência na Terra do Pau Brasil”. O experimento cênico abordava a violência histórica na conquista de territórios no Brasil e a resistência contemporânea dos povos originários, dentro de um projeto do Sesc Ipiranga.
“Para Brecht, nada é impossível de ser transformado”.
Marcos Damigo, no programa da peça, p.9.
“O teatro não deixa de ser teatro, mesmo quando é de aprendizagem,
e, desde que seja bom teatro, diverte”.
Bertolt Brecht, no programa da peça, p.19.
Excerto inicial de OS HORÁCIOS E OS CURIÁCIOS
Trad. Mário da Silva
Coro dos Curiácios
Curiácios, por que dilacerar-nos uns aos outros?
Mais um inverno é passado,
E dentro de nossos muros
Continua rugindo furiosa
A luta pela posse da terra e pela posse das minas.
Assim
Decidimos pegar em armas
E, em três corpos de tropas,
Investir sobre a terra dos Horácios,
A fim de subjugá-los e apossar-nos
De tudo o que ele têm em cima e embaixo do solo.
[gritam para os Horácios do outro lado]
Rendam-se!
Entreguem suas minas, campos e ferramentas, senão
Iremos atacá-los com forças tão potentes
Que nenhum de vocês há de escapar!
Coro dos Horácios
Lá vêm os assaltantes! Com possantes
Exércitos atacam nossa terra.
Pouparão nossas vidas, se entregarmos
Tudo de que, para viver, necessitamos.
Entretanto, por que temer a morte
E não a fome?
Não nos renderemos!
COMENTÁRIO
Brecht escreveu em 1933-1934 o texto que retoma a lenda da antiga Roma dos três irmãos gêmeos que lutam de um lado e de outro do conflito. Trata-se de uma peça de aprendizagem em torno dos estratagemas de combate, com coros e personagens que não são identificados por nomes, portanto, não há um protagonista.
Como observa Ruth Röhl no artigo “Heiner Müller e Brecht”, na revista Pandaemonium Germanicum (n.4, p.99-107, 2000), Brecht, preocupado com a luta de classes, se concentra nas táticas que deram vitória aos Horácios, apesar de eles possuírem armas tecnicamente inferiores às dos inimigos.
Cibele Forjaz falando
A encenadora Cibele Forjaz esclarece desde o início que os Curiácios representam “os Um”, os que se consideram universais, enquanto o Horácios são os representantes da cultura multiétnica, por isso, associados aos povos originários do Brasil, identificação que acontece no palco, diante de artistas de fala guarani.
Cibele esclarece que o texto adotado é o do próprio Brecht, o que é fato. Xs “jogadorxs”, como o elenco é denominado, encenam as três batalhas do texto de partida: a dos Arqueiros, a dos Lanceiros e a dos Escudeiros (Espadachins, no texto traduzido). As armas dos Curiácios e os artistas que as empunham evocam os robocops do cinema ao passo que os Horácios se munem de objetos simbólicos como cachimbos indígenas, paus de chuva e um grande espelho circular (como o usado em estacionamentos) por escudo.
No palco, também há de um lado os músicos com os instrumentos convencionais e os guaranis com os seus próprios instrumentos de outro. Como destaca o material de divulgação distribuído pelo Sesc, trata-se de uma opereta musical que articula a narrativa brechtiana com a resistência dos povos ameríndios no Brasil contemporâneo. E isso está muito presente. Menos nos “cacos” inseridos no texto de Brecht, mais na exibição de vídeos com falas de Jair Bolsonaro sobre a demarcação de terras indígenas, denúncias contra a hidrelétrica de Belo Monte e a mineradora Belo Sun, bem como dando voz à líder indígena Sônia Guajajara.
A peça tem mediação da encenadora com uma frequência que talvez incomode. São recorrentes as intervenções de natureza variada (leitura de trecho de livro, questionamento ao público, participação de espectadores em danças com os guaranis no palco), tudo para propiciar uma experiência mais do que uma representação – sendo esse o propósito do grupo, que isso fique claro.
Considerei uma felicidade ouvir o texto de Brecht cantado, um texto poético, mas descritivo que tende a ficar cansativo. Particularmente, o refrão “em uma coisa existem muitas coisas”, da batalha dos Lanceiros, coreografado com os paus de chuva como lanças, é um momento muito feliz do espetáculo.
Alerta de SPOILER!
Não se trataria de spoiler se o desfecho de “Os Um e os Outros” fosse o mesmo da conhecida peça de Brecht. No final do conflito, quando o único combatente Horácio que restou está para matar o último dos Curiácios, a trama sofre uma reviravolta. E a razão é apresentada pela encenadora: o líder da resistência indígena Ailton Krenak, convidado para um ensaio, considerou que a solução do conflito não apresentava uma alternativa ao convencional desfecho bélico. A cena é, então, refeita durante o espetáculo e o final acaba sendo um outro que o de Brecht.
Para mim, foi inevitável associar essa montagem teatral ao filme “Bacurau”. Ambos colocam duas culturas ou formas de ver o mundo em polos antagônicos. Ambos expõem o combate físico, a batalha armada mesmo. Ambos trabalham o coletivo artístico, não o protagonismo de um só. Ambos evocam no espectador o espírito de mobilização. Contudo, enquanto o filme descarta o brasileiro como “homem cordial” (Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil”, 1936) e retoma, na imagem do museu da pequena Bacurau, a memória de resistência popular violenta, já a peça busca como alternativa o reconhecimento de uma identidade multiétnica para o brasileiro, mobilizando os outros por meio da conscientização das agressões aos povos indígenas do país.
(Renata Cazarini)
Você pode ler a crítica na Folha de S. Paulo aqui.