SÍSIFO



Tema: mito de Sísifo
Texto: Gregório Duvivier e Vinícius Calderoni
Direção: Vinicius Calderoni
Elenco: Gregório Duvivier
Duração: 75 minutos
Estreia: 06.04.19 (Festival de Teatro de Curitiba)
Assistido em: 18.08.19


Temporada no Rio de Janeiro: 09.08 a 09.09.19
Local: Teatro Prudential – Rio de Janeiro


Temporada em São Paulo: 13.09 a 20.10.19
Local: Sesc Santana – São Paulo

Veja nosso post anterior.  


Rampa Sísifo


COMENTÁRIO
O movimento repetitivo de subir uma rampa e saltar no fim dela define o andamento da peça de Duvivier e Calderoni como um gif. No início, a trilha sonora e a ação mimética de Duvivier fazem até lembrar o game do Super Mario Bros. Adotando como figurino único um conjunto esportivo preto para fazer a repetida caminhada rampa acima, a direção aposta na mecanização evidente na prática de exercícios nas academias. O automatismo da sociedade contemporânea – daí a alusão ao mito de Sísifo, que aparece apenas no título da peça – é rompido pelo texto multifacetado das 60 cenas que compõem o espetáculo. Mesmo o riso, estimulado com frequência, nem sempre sai automático. Um dos momentos altos é quando Duvivier apresenta Ornela, que negocia sentidos de vida. O texto é quase integralmente o seguinte:


Oi. O meu nome é Ornela e eu deixei de fazer brigadeiro artesanal pra fazer sentido. Sentido de vida mesmo. No começo foi difícil. O povo dizia: “Cê tá louca, Ornela? Seu brigadeiro é uma delícia. Vende que nem água”. Mas eu hoje faço o que eu gosto. E faz sentido pra mim. Assim, no começo, tinha poucas encomendas, mas aos poucos eu fui ganhando cada vez mais. E hoje eu tou fazendo todo tipo de sentido. Já fiz um sentido prum rapaz que foi estudar pra ser maestro e ficar famoso. Mas eu não tenho preconceito. Eu faço sentido pra gente que quer apostas em cavalo, gente que quer até se matar, porque às vezes o sentido da vida da pessoa é acabar com a própria vida e a gente que trabalha nisso, no comércio, não pode ter preconceito. Então a gente tá fazendo trabalho de 20 sentidos por semana. Eu até tive que terceirizar, eu contratei minha amiga Joyce. E no começo foi difícil. Os sentidos dela eram muito estreitos, sabe. Não cabiam na vida das pessoas. Porque antes ela fazia bijou, daí ela demorou pra pegar o jeito. Mas hoje em dia faz uns sentidos lindos. Outro dia ela fez um sentido para uma menina que foi abrir uma ONG para cuidar de gente faminta na África. Eu falei: “Joyce, daqui a pouco eu vou querer um sentido seu pra mim”. Se tudo continuar do jeito que tá, nesse workflow, daqui a pouco a gente vai realizar o nosso sonho que é abrir a nossa própria sentideria. Eu posso ver os executivos passando de patinete elétrico, levando um sentidinho pra viagem. 


É hilariante. Fez a plateia rir muito na sessão a que compareci. Contudo, a crítica comportamental e política constante ganha às vezes um tom muito carregado, ainda assim, poético, como na denúncia sobre os muitos povos em exílio pelo mundo. Nesta cena, a composição intercala o relato da ação de um escritor com o texto que ele produz, aludindo a Graciliano Ramos e a Guimarães Rosa:


Um escritor se senta em sua escrivaninha. / O pai, a mãe, os dois filhos e uma cachorra. / Ele começa a escrever uma frase. / Fabiano, Sinhá Vitória e dois meninos e Baleia atravessam a fronteira da Síria. / O escritor tem uma ideia. / Eles caminham em direção ao muro, em Tijuana. / O escritor interrompe a frase, antes de concluir. / Eles fogem da Polônia da Segunda Guerra, partem do Haiti, da Armênia, antes do massacre. / O escritor procura a melhor palavra para concluir a sua sentença. / Eles saem de Cuba, do Haiti, de Serra Leoa. / O escritor arrisca algumas palavras sem sucesso. / Eles caminham debaixo do sol abrasador da Guiné, da chuva ácida, do vento veloz. / O escritor encontra a palavra. / O pai, a mãe, os dois filhos e a cachorra numa minúscula jangada improvisada. / O escritor pousa a ponta da caneta sobre o papel. / O pai, a mãe, os dois filhos e a cachorra remam. / O escritor escreve a palavra “travessia”. / Eles atravessam.


Duvivier é um dos agentes culturais considerados antagônicos ao atual governo do país. Embora veja no teatro a perspectiva de reunir mentes não unânimes, como afirmou em entrevista ao jornal O Globo, Duvivier não se furta a críticas mais diretas numa das cenas finais:

Eu prevejo tempo sombrio, com pancadas de obscurantismo em toda parte. O céu claro da razão aparece quase sempre encoberto por nuvens de brutalidade. Os ventos da tristeza podem chegar a 200 Km por hora. Aqui nessa região, onde soprava uma brisa de renovação, está prevista uma forte geada de selvageria e barbárie, com fortes danos ao patrimônio público e o cancelamento do conceito de futuro. 


Mas se é sem fim a missão de Sísifo, condenado pelo deus dos deuses a rolar até o cume da montanha uma pedra que volta sempre pra baixo, Duvivier e Calderoni deixam uma gota de esperança como mensagem. A peça tem início e fim com a frase: “Não se chega a lugar algum sem passar por outro”. A expectativa é de atravessar tempos, lugares, experiências. “É esse o jogo”, como eles dizem.


(Renata Cazarini)