RES PUBLICA 2023 (do Bloco de Notas Tristes)


Tema: República, de Platão
Texto: Biagio Pecorelli
Direção: Biagio Pecorelli
Elenco: Biagio Pecorelli, Bruno Caetano, Camila Rios, Edson van Gogh, Jonnata Doll e Leonarda Glück 
Duração: 120 min
Temporada: 11.10.19 a 10.11.19
Assistido em: 20.10.2019


SINOPSE
Réveillon de 2023. O movimento Anaconda Brazil leva às ruas grandes massas patrióticas. O Brasil vive um período de grande prosperidade econômica, mas não para Tom, Billy, Suzanne, Vincent, John e Vallentina, que vivem amontoados numa pequena república no centro de São Paulo. No limite entre ficção e realidade, eles contam histórias e se revezam na tarefa de trazer da rua objetos com os quais vão construindo uma trincheira, atrás da qual estarão sempre entre combater ou esperar misticamente por dias melhores. (Divulgação)


NOTA BENE
A trupe “A motosserra perfumada” divulgou a seguinte nota antes de estrear no CCSP.
ROBERTO ALVIM CENSURA PEÇA TEATRAL EM SÃO PAULO COM BASE EM SUA SINOPSE
Esta é uma CARTA pela livre expressão do pensamento e do fazer teatral no Brasil. Um ALERTA a todos e todas artistas deste país, pois está aberto um precedente gravíssimo, que um dia o Brasil já conheceu muito bem, o precedente da CENSURA, e que agora tem sido chamado de “FILTRO”.

Durante a Ditadura (1964-1985), o Estado brasileiro financiava o trabalho de censores responsáveis por analisar, deferir ou indeferir, parcial ou integralmente, a execução ou circulação de shows, peças de teatro, textos jornalísticos, canções e obras de arte em geral. No teatro daqueles anos, o censor era aquele profissional que lia os textos para emitir seus pareceres ou riscar trechos que, segundo sua análise, atentavam contra a moralidade, propagandeavam ideais revolucionários ou denunciavam a Ditadura. Não raro, o censor sentava-se à plateia, ao lado do diretor e do dramaturgo, para assistir aos ensaios, tomar notas, impor cortes, edições etc.

Não foi o que aconteceu conosco, em agosto de 2019. O diretor do Centro de Artes Cênicas da FUNARTE (Ceacen), Roberto Alvim, censurou sumariamente a realização da temporada de estreia da nossa peça RES PUBLICA 2023, em outubro, no Complexo Cultural da FUNARTE, em São Paulo, tomando por base – pasmem! – apenas a sinopse do texto. Ele não leu a peça. Ele nunca viu o espetáculo, que ainda nem existe. Mesmo assim, sua assessoria afirmou, no e-mail que enviou à Coordenação local da FUNARTE, no dia 18 de agosto, que a peça RES PUBLICA 2023 não reúne “qualidade artística” para ocupar uma das salas do Complexo.

Ora, desde 2016, a FUNARTE tem recebido, conforme seu regimento interno, grupos teatrais de diversas regiões do país sem que a tal “qualidade artística” seja algo definitivo e nunca, ao longo destes anos, o Ceacen se negou a assinar o contrato de cessão de uso do espaço a qualquer grupo, tendo sempre respeitado a lista de espera e o quebra-cabeça dos funcionários locais que procuram, na medida do possível, contemplar a todos. Isso foi o que tentou argumentar para Roberto Alvim a coordenadora do Complexo, Maria Ester Monteiro, o que provocou a exoneração da funcionária, conforme relatou matéria publicada no jornal O Globo, no último sábado, 24 de agosto.

Apesar da matéria velar o nome do grupo e do espetáculo envolvido na polêmica, ao ler nossa sinopse praticamente copiada no jornal, não tivemos dúvida de que se tratava de RES PUBLICA 2023, e de que estávamos, àquela altura, sofrendo um escandaloso processo de censura; algo que vinha “de cima”, de uma decisão autocrática e sem qualquer fundamento, a não ser político. Precisávamos, no entanto, aguardar até a segunda-feira, dia 26 de agosto, para conversar com a Coordenadora interina da FUNARTE, Sharine Melo e o administrador, Ricardo Dias, que, visivelmente constrangidos, nos comunicaram que a temporada do espetáculo estava, de fato, por ordem do Centro de Artes Cênicas, cancelada.

A MOTOSSERRA PERFUMADA é um grupo de teatro com seis anos de pesquisa cênica na Cidade de São Paulo. Em 2016, após a última temporada do nosso primeiro espetáculo, “Aquilo que me arrancaram foi a única coisa que me restou” (2015), mergulhamos na criação de um novo trabalho, quando formulamos a hipótese distópica de um Brasil Tropical Fascista em 2023. Corria à época, em Brasília, o processo de impeachment da presidenta Dilma. Da hipótese de um futuro terrível para nós, artistas, e da própria vida naquele bairro, historicamente configurado como reduto de gays, travestis, prostitutas, artistas, imigrantes e adictos, chegamos, no final daquele ano de 2016, ao texto RES PUBLICA 2023. 

RES PUBLICA 2023 seria, em 2017 e 2018, eleito o 4º melhor texto inscrito na Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos do Centro Cultural São Paulo (CCSP), obtendo por dois anos consecutivos a primeira suplência num edital que conta, a cada ano, com mais de 250 inscrições. Em 2019, cientes da urgência de um texto que, para o riso de uns e o assombro de outros, a história parecia imitar, começamos a levantar a peça “na raça”, como se diz.

É evidente que não há nenhum tipo de critério de “qualidade artística” envolvido no veto a nossa temporada. Trata-se, claro, de um “filtro” que o Centro de Artes Cênicas impôs, drasticamente, à Regional da FUNARTE em São Paulo. Fomos os primeiros a serem “filtrados”. Outros, talvez, estejam sendo, nesse exato momento, “filtrados” num gabinete em Brasília, segundo a profilática visão de Roberto Alvim sobre o que é arte e o que não é arte. 

Sua defesa vigorosa, sua “Máquina de Guerra” por um objeto de arte autônomo, livre da seiva má das ideologias políticas, embora sempre tenha nos soado greenberguiano demais, modernista demais, é respeitável. O que não é respeitável é tirar disso a conclusão de que apenas a Esquerda “conspurca”, com suas pautas identitárias, a autonomia do objeto de arte – particularmente, de textos e espetáculos teatrais, e que a Direita, somente a Direita, teria o dom de preservar certo “espírito” de liberdade que caracteriza, para Alvim, a “grande arte”. 

O que não é respeitável é empreender uma política higienista na arte, em prol de um “Renascimento” que não abriga a diversidade de artistas e obras, mais ou menos engajadas, mais ou menos “abertas”, que caracteriza a cultura brasileira hoje. Leni Riefenstahl, a cineasta queridinha de Hitler e Goebbels, emprestava às suas “ficções alpinas” o mesmo ar sublime e imaterial oposto a tal “arte degenerada” condenada pelo Nazismo, quando o que exibia ao grande público, na verdade, eram corpos arianos musculosos, brancos e indefectíveis, além de ternas crianças saudando a passagem do Führer na multidão. E de pensar no quanto Alvim é um diretor pródigo, autor de obras relevantes para o teatro brasileiro do século XXI… torna-se agora um “goebbelsinho” do Bolsonaro.

Com esse gesto de censura – que, a rigor, nem lhe caberia, afinal, sua função no Governo é administrativa e não curatorial, cabendo-lhe no máximo nomear curadores, não curar espetáculos – Roberto Alvim mandou avisar que não medirá esforços contra peças que exponham qualquer conteúdo que lhe pareça crítico com relação ao Governo, fazendo prevalecer a patrulha ideológica sobre qualquer critério artístico. 

No fundo, o novo Diretor do Ceacen da FUNARTE apenas cumpre a surrada agenda do bolsonarismo: criar polêmicas morais e ideológicas, principalmente com artistas, para adiar o conhecimento público da inoperância do seu Governo, da debilidade administrativa e mental do seu Presidente e da farra dos interesses privados sobre as riquezas materiais e simbólicas do Brasil.

E é precisamente por tudo isso que essa carta também se torna um chamamento a todos e todas artistas, pensadores e defensores intransigentes da Democracia, da Cultura e da liberdade de expressão para que possamos estar, mais uma vez na História, juntos.

Quanto à peça, estreará. Não sabemos ainda quando, onde nem como. Mas, estreará!
Viva o Teatro!

Assina: A MOTOSSERRA PERFUMADA
RES PUBLICA, 27 de agosto de 2019


COMENTÁRIO

É possível elencar razões para querer estar na plateia de “Res Publica 2023”. A primeira, talvez, a de prestigiar uma peça que se apresenta como censurada por instâncias do governo federal (veja a carta acima). Mas não só. Também pela experiência de estar no subsolo do Centro Cultural São Paulo (CCSP), no espaço cênico Ademar Guerra, que incorpora uma enorme rocha e a paisagem lúgubre que cai bem com o imediato futuro distópico da peça. Ou ainda pelo elenco que seduz: em particular, Bruno Caetano, dominando o espaço cênico do início ao fim, como Billy, um homossexual dependente de créditos de telefonia celular e de cocaína.



Não se trata, a bem da verdade, de uma peça clássica, exceto pela longínqua motivação do nome, que associa o conceito da res publica latina, isto é, a coisa pública, a república, à “República” de Platão, a cidade ideal do filósofo grego do século IV a.C., ao bairro República, da capital paulista, onde se desenvolve a trama, na qual “aquele” e seus seguidores têm o controle autoritário não apenas da política, mas dos costumes. A república de transgressores, estabelecida no bairro República, evita a confrontação com os seguidores do movimento Anaconda Brazil, mas ele se torna inevitável.


O enredo se desenvolve entre a véspera do Ano Novo de 2023 e os primeiros dias desse ano, que marca uma ligeira alteração na rotação da Terra. Não espere um teatro convencional. Como explicita o grupo: “Em sua pesquisa continuada, A MOTOSSERRA explora os limites entre teatro, performance e música, criando cenas energéticas, pautadas no uso sincero e despojado da palavra”. De fato, não se poupa a palavra, que é, no entanto, em termos gerais, bem empregada. Há música também. Veja a entrevista  aqui.

O final é o mais gratificante para o espectador, me parece, mas, com espírito aberto à experiência de vivenciar um teatro provocador sem pretensões exageradas, é possível fruir o espetáculo integralmente. Há algo à espreita, alertam os republicanos.
(Renata Cazarini)