ACHILLES


Tema: “Ilíada”, de Homero
Texto: Ewan Downie
Dramaturgia e música: Anna Porubcansky
Direção: Ewan Downie e Ian Spink
Elenco: Ewan Downie
Local: Barron Theatre, The University of St. Andrews, Escócia
Duração: 45 min.
Assistido em: 12.10.2019


Comentário

Por Beethoven Alvarez*

Achilles” conta a história do maior herói dos gregos durante a Guerra de Troia: como seu melhor amigo é morto pelo campeão dos troianos, sua tristeza desesperada e sua terrível vingança. Em uma fusão de histórias, dança e música, “Achilles” é a história do exorcismo de um homem: um esgotamento de sua vulnerabilidade, raiva e humanidade.

Essa é a sinopse do espetáculo “Achilles” (“Aquiles”), escrito e performado por Ewan Downie, dirigido por ele e Ian Spink, da “Company of Wolves”, de Glasgow, que pode ser encontrada na página do grupo.

A performance de 45 minutos de Ewan fez uma turnê pelos teatros do Reino Unido em 2019 e, ontem, parou em St Andrews para uma apresentação especial para membros da School of Classics, da University of St Andrews, no aconchegante Barron Theatre (95 North St). 


Sozinho no meio do pequeno palco, Ewan, uma espécie de rapsodo-performer, começa a contar a história homérica da guerra de Troia no momento em que Aquiles se encontra em sua tenda, irado e de orgulho ferido, recusando-se a retornar ao campo de batalha. A narrativa, que segue a história homérica (não consegui, a princípio, identificar a tradução inglesa que Ewan utilizou para montar seu texto), começa a descrever algo que eu chamaria de uma “geografia da Guerra de Troia” e, não sei se de propósito ou por uma associação livre minha, a écfrase performática de Ewan lembrava muito os tons pastéis de um [pintor William] Turner, o que achei bem interessante e me fez viajar pelos românticos e turbulentos litorais dessa Pérgamo meio britânica. 

A narrativa vai ganhando corpo, literalmente nesse caso, com os movimentos de Ewan, que vão incorporando cada vez mais elementos performáticos. Braços, pernas, tórax, pescoço, tudo se movimenta e se distende à medida que a ira de Aquiles vai passando do afetado chilique para a fúria e a raiva descomunal com a morte Pátroclo. O cerne de todo o espetáculo é a potência da ira, a capacidade transformadora da cólera. E, de repente, Aquiles está no campo de batalha estraçalhando crânios, enfiando lanças em têmporas, rasgando generais troianos, esbugalhando olhos, em imagens de brutalidade e selvageria dignas de uma graphic novel de Alan Moore ou Frank Miller.  


Ainda assim, mesmo muito performático e ecfrástico, o texto em algum momento cansa. Há uma copiosidade de imagens e palavras e movimentos, espasmos, silêncios, ritmos, mas que juntos criam um tom grave e lamentoso, em alguma medida, muito uniforme. Embora seja absurdamente louvável a capacidade de respiração e elocução de Ewan, que mesmo correndo e gesticulando quase sem parar, consegue ainda manter uma dicção completamente inteligível, pouquíssimo ofegante; as palavras vão se perdendo não por isso, mas pela extensão do próprio texto, que requer uma plateia de ouvidos dedicados. 

Em três momentos, que dividem o espetáculo em três partes, Ewan introduz cenas de lamento “assustadoramente memoráveis” (“chillingly memorable”), como descreveu Mary Brennan. São cânticos de lamentações que mantêm o texto em grego (ou, pelo menos, eu creio que seja; essas passagens são composição de Ewan com Anna Porubcansky, sua companheira e codiretora artística da companhia). Lançado ao chão se contorcendo muito, colocando-se em posições complicadíssimas, muitas vezes com pernas e braços suspensos por longos períodos, Ewan vocaliza (e a palavra é boa, porque praticamente só ouvimos as longuíssimas vogais) uivos viscerais e queixosos verdadeiramente notáveis. Tudo numa expressão muito corpórea e sensitiva de dor e sofrimento, que se excele em gritos de raiva e rancor pela morte de Pátroclo. 

Essa reimaginação do mito de Aquiles, mimetizada agora pelo corpo do rapsodo-performer, por fim, é crua, quase nua, violenta, aguda; é humana e sublime, com toda beleza da representação do terror e com toda sua dificuldade.


*Beethoven Alvarez é Professor Adjunto de Língua e Literatura Latina, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua na Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PosLing/UFF), na Linha 2: Teorias do Texto, do Discurso e da Tradução. Possui Doutorado em Linguística (na área de Estudos Clássicos) pela Unicamp, com período sanduíche na University of Oxford (Corpus Christi College). Possui Mestrado em Letras Clássicas pela UFRJ e Graduação em Letras (Port/Latim) pela UERJ. Hoje tem interesse principalmente em: teatro romano antigo, comédia romana, métrica latina arcaica (iambo-trocaica), filologia clássica, versificação (de língua neolatinas e outras), estudos da tradução e tradução poética.