MULHERES TECENDO HISTÓRIAS: AULA 12 [01.06.19]


“Ir longe é respeitar as diferenças,
nunca com o discurso de igualdadezinha, mas de Justiça”.
(Renato Gama)


Crédito: Louise Carmo
Ali, na colina da Penha de França, a gente recebe um abraço caloroso quando chega e um caldinho quente na despedida. Tem gente boa por ali, e isso depura o ar da cidade tão poluída de fumaça e de maldade. O clima é propício às relações, ao amor fraternal, à devoção religiosa. Ali tem memória, mas tem fé no que virá – que é o que conta mais que tudo. Tem afeição e tem sabedoria.

Tem arte e tem artesania. Juntar as belas num ato que transcende a beleza conhecida foi uma experiência de vida sem igual. Sei que pra mim e sei que pra outras. E outros. Foi um ato de mulheres e pra mulheres, mas havia ali homens que fazem sua diferença. Renato Gama, compositor que cunhou a epígrafe deste post, o diretor artístico orquestra as vozes das Pastoras do Rosário, como ninfas que seduzem todos à sua volta.

É assim que elas são. E ele – com coragem, sem se envergonhar – diz: “É aqui, com elas, que tou aprendendo que tem que levantar”. E se levanta também a comunidade local pela preservação do patrimônio cultural da região leste de São Paulo no Memorial Penha de França, alojado numa das casas mais antigas do bairro, erguida em 1930 para residência da família Guilherme Folco e disponibilizada pelos herdeiros em 2004 para abrigar um acervo de fotos e documentos com a curadoria de Francisco Folco. Ali mesmo foram recebidas as alunas do mestre poeta Marcelino Freire, as bordadeiras da Coletiva Tear e Poesia e as Pastoras do Rosário.
Crédito: Louise Carmo
A formação completa das Pastoras do Rosário, na foto acima, da esquerda para a direita. Em pé: Marlei Boa Morte, Carla Lopes, Sandrinha do Rosário, Neuza Lima, Sol Campos. Sentadas: Dona Margarida, Lara de Jesus, Wilma Silva. Das oito pastoras, apenas a Wilma não participa do curso “Mulheres tecendo histórias”, mas, afinal, pudemos conhecê-la.
Elas cantaram esta canção composta por Renato Gama e Ronaldo Gama. A letra é assim:


MULHER, UM FATO!
Sou aquela que lê
Que escreve no barro
Que luta e que crê
Que aguenta o fardo
Sou árvore, sou tora
Que nasce em machado
Sou água que brota
Mulher, um fato!
De mim nasce o planeta
Absorvemos o contrário
O que tiver que ser que seja
Somos as Pastoras do Rosário


Marcelino e Renato


Junto dessas mulheres da voz, outras mulheres, as das mãos. As Marias bordadeiras que já tínhamos conhecido numa visita ao Itaú Cultural. Veja o post. Ali, na Penha, elas aportam as cores das linhas, a destreza dos dedos. Inscritas nos tecidos as frases escolhidas pelo mestre Marcelino, outro homem que é um eixo desse encontro de forças poéticas que se complementam pra transcender o convencional da poesia no papel.

As frases escolhidas, algumas já bordadas, outras por bordar, serão exibidas no encerramento do curso. A da Margaria e a da Delma são homenagens à Coletiva Tear e Poesia:
Quatro Marias. Quatro asas para voar. (Margarida Soares)
O sumo gasto contido da nossa existência cria cultura... dá resistência! (Delma)
Cantar deixou de ser um sonho. Acordei, já era realidade. (Neuza de Lima)
Acordar é difícil, pois o corpo é dor. (Sônia Oliveira)
Eu oro, eu choro, eu melhoro... (Idalina Carezzato)




Cheiro de mato, não tem melhor lugar, é fato. (Márcia Nichii)
As palavras que não podem ser ditas esculhambam a verdade. (Márcia Traldi)
Já vaguei. Só quero um canto. (Heloisa Rocha Aguieiras)
Vou chegar. Não sei quando. (Lenita Santos)
A terra em que nasci, lá deixei o meu chão. (Sol Campos)
A voz que fala... cala. (Ivonete Pascoal)
Insista, persista e nunca desista. (Tania Libório)
Uma vez, em outra vida, pisei na calçada da paciência. (Fernanda de Oliveira)
Tira o seu racismo do caminho que eu quero passar com a minha cor. (Marley Boa Morte)

Gosto de fazer as pessoas sorrirem, mas não gosto que me vejam chorando. (Lara de Jesus)
Tesouro é a ilusão no fim do arco-íris. (Cris Eiko)
Ausência de palavras me faz naufragar em meus pensamentos. (Fátima Martinez)
Ordem, o que não há na alma. (Cristiane Bezerra)
Destino é lugar infinito. (Ligéa de Mateo)
Alimente os sonhos na utopia da alma. (Carla Lopes)
Carma Caminho universo de onde fui extirpada, sem entender... (Louise Carmo)
MARIA - Brincar de casinha. Morrer de pancada. (Renata Cazarini)


A Delma, alma solidária de poeta, fez uma doação à Coletiva Tear e Poesia para que continue o projeto junto a comunidades guaranis nas bordas de São Paulo e recebe da bordadeira Maria do Socorro um kit que relata as atividades do grupo.

Já era tarde. A gente tinha que ir. Deixar ali aquele lugar de partilha de dons. Mas não se podia partir sem visitar a Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França, que se preparava com cores e amores para sua 18ª Festa que começava no dia seguinte. A igreja estava fechada. Foi aberta pra gente ver e ouvir as pastoras ali, mais um lugar de calor.


Como diz uma placa de mármore na parede, a capela, que registra seu pedido de construção em 1802, é “testemunha histórica da solidariedade no sofrimento e da esperança na redenção”. Lara conta pra gente que havia ali pendurados objetos de violência contra os escravos, parte da história da comunidade religiosa que se perdeu na passagem do tempo. Agora, o que se faz ali, com vistas à preservação da cultura e da memória, não é pouco.


A força desse agrupamento de gente boa está inscrita na frase do tema central da festa: “Rosário: ventre que gera sementes de resistência”. São múltiplos ventres que se reúnem nesse primeiro sábado de junho de 2019. Um sábado que vai do sol à chuva nutriz da vida. Sobre o tema da festa, Cláudia Rosalina Adão escreveu:
(...)
O ventre, símbolo da fertilidade, representa a possibilidade de gerar filhos, mas também de gerar projetos, novos relacionamentos, novos tempos e possibilidades. Queremos honrar a terra-ventre que nos dá a base, o alimento, a vida e a esperança.
E se a terra estiver muito dura e seca? E se todas as árvores já tiverem morrido e os animais, fugido após tantas violações? E se ficar difícil acreditar que algo possa nascer novamente? Aí te convidamos a amarrar ao teu arado um propósito! É isso mesmo... peguem os seus arados e vamos trabalhar a terra!
(...)
Pois é. Tem algo nesse ar da Penha de França que faz a gente se sentir em casa partilhando o mesmo pão e também a mesma dor e a mesma força e o mesmo amor. Tem algo ali que é magia.
Saímos da celebrada Avenida Paulista um grupo modesto e feliz.


Saímos da encantada Igreja do Rosário um mundo.