As Nuvens e/ou um deus chamado dinheiro: 16 anos depois [COMENTÁRIO]





Adriane da Silva Duarte*

Dentro do Projeto História Viva do Teatro, do Sesc Bom Retiro, a Cia Parlapatões, Patifes e Paspalhões apresentou As Nuvens e/ou um deus chamado dinheiro. Foram apenas duas sessões (24 e 25/06/2019) em que os comediantes revisitaram a adaptação de duas comédias do comediógrafo grego Aristófanes (séc.V a.C.), As Nuvens e Pluto, concebida pela Companhia há dezesseis anos.

Assisti à peça quando da sua estreia, em 2003, e pude admirar as soluções que o diretor, Hugo Possolo, encontrou para verter o humor corrosivo do poeta grego, mantendo a característica principal do gênero: a sátira da política e dos costumes. A comédia antiga promovia a crítica da Atenas contemporânea e, de instituições a indivíduos, ninguém escapava incólume. Arraigada a seu tempo, muitas das referências são hoje obscuras para leitores e espectadores, de modo que para reativar sua graça é fundamental trazê-la para nossa época, voltando para nós mesmos seu olhar demolidor e evitando o risco de se contentar apenas com uma montagem meramente museológica.

Esse risco, Possolo e trupe definitivamente não correram. Sua montagem era viva, mordaz, e soube captar bem as questões latentes naquele longínquo 2003, em que Lula acabava de assumir a presidência e a elite e o “povão” viviam às turras – soa familiar, não? Os dois protagonistas (sim, dois) da comédia, Estrepado e Crédulo (nomes adaptados do Estrepsíades, d’ As Nuvens, e do Crêmilo, de Pluto), eram a expressão da tensão social: um inescrupuloso arrivista endividado e um trabalhador honesto, condenado a viver na miséria. Seus destinos se cruzavam quando, em um encontro ocasional, explodia uma desavença e Estrepado matava Crédulo.

Notável naquela montagem era a ideia de fundir as duas comédias, construindo uma terceira narrativa, em que sobressaia a crítica à manipulação do discurso, às redes sociais (“nuvens”), à desigualdade social. O humor essencialmente verbal de Aristófanes tornou-se mais físico, pagando tributo ao DNA clownesco dos Parlapatões, mas sem que com isso o espírito do(s) texto(s) grego(s) fosse traído. Muito pelo contrário! Não tenho dúvida em afirmar que se trata da melhor montagem brasileira de Aristófanes que conheço – lamentavelmente são poucas e pouco variadas, com predomínio de Lisístrata.

Dito isso, a oportunidade de rever a peça passados tantos anos gerou a expectativa de como a montagem resistiria à passagem dos anos – noto que nesse intervalo houve outros revivals, que não pude conferir. Dado o espírito do gênero e da Companhia, fui ao teatro esperando que o contexto político atual e, mesmo, a dimensão que tomaram as redes sociais desde então, a polêmica das fakenews, e outras drásticas mudanças que vivenciamos enquanto país e planeta sugerissem adaptações no enredo. Menos Wall Street, mais Facebook e Whatsapp! Não tinha em mente mudanças estruturais, mas gostaria de repaginar Wall Street / Sócrates, por exemplo, para uma caricatura de Olavo de Carvalho, por exemplo. Por certo, encontrei alusões a Bolsonaro e a seus ministros tresloucados, assim como ao universo pop. Mas as julguei tímidas e um pouco perdidas na mistura com referências reminiscentes da montagem-mãe – mais notável nos números musicais.

 
Talvez eu esteja sendo muito exigente e aquilo de que senti falta seja apenas consequência da falta de tempo para trabalhar essas novas referências na peça, lapidando-as e retirando uma ou outra que caducou depois de mais de  uma década, e de ritmo, porque, evidentemente, para apenas duas apresentações, não é possível exigir dos atores a agilidade e inteligência que se naturalizam nos ensaios e durante a temporada, inclusive em vista da resposta do público.

Ainda assim, as qualidades que vi em 2003 continuam presentes e foi um prazer rever em cena alguns dos atores originais daquela montagem, sobretudo os impagáveis Hugo Possolo e Raul Barreto. E, é claro, dei boas risadas, às vezes com ansiadas e velhas piadas.

*Adriane da Silva Duarte é professora de Língua e Literatura Grega
na Universidade de São Paulo (USP), atuando na graduação e na pós-graduação. Coordena, com a Profa. Dra. Zélia de Almeida Cardoso, o Grupo de Pesquisa “Estudos sobre o Teatro Antigo”, fundado em 2002. É tradutora de Aristófanes: “As Aves” (Hucitec, 2000) e “Duas Comédias: Lisístrata e As Tesmoforiantes” (Martins Fontes, 2005), entre outras publicações.

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