MULHERES TECENDO HISTÓRIAS: AULA 14 [15.06.19]


“Uma palavra pode ser a chave de leitura de um poema”.
(Marcelino Freire)


A gente leu mais algumas cartas para o Sr.Tempo e a gravidade da minha arrastou o povo pra baixo.  Eu li a minha muito envolvida com aquilo e acho que pegou porque foi o gatilho para uma conversa mais ou menos assim:


Heloísa: Todo bom escritor é triste? É preciso ser triste pra escrever?
Marcelino: Não, mas a alegria pode ser superficial. Uma autora me disse que, ao colocar a palavra “felicidade”, seus livros vendiam mais.
Sônia: Eu vejo a alegria, a felicidade, como contentamento. Trabalho com o contentamento de algo, mas não consigo chegar ao ápice da alegria.
Louise: Criou-se um padrão de alegria com esse negócio de autoajuda.



Então, teve conversa. Eu mesma fiquei quieta, mas a conversa rolou. Foi uma aula de conversa e de leitura. Outros assuntos foram tratados, mas quero pôr foco no confronto tristeza x alegria no fazer poético.


DESENCANTO [Manuel Bandeira]
Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
— Eu faço versos como quem morre.
(Teresópolis, 1912)
[A cinza das horas, 1917]
Bandeira tem muitos poemas alegres, mas este é – pra mim – a essência do poeta.
Marcelino – vai saber por que – confundiu este com o que vem a seguir.


TESTAMENTO [Manuel Bandeira]
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.


Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.


Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.


Criou-me, desde eu menino.
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!


Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!


[Lira dos cinquent’anos, 1940]

Sobre a vida e a obra de Manuel Bandeira, leia mais aqui.
Penso que os dois poemas são cheios de dor e de beleza. Quando Bandeira se diz um “poeta-menor” (nenhuma falsa modéstia), indica o caminho da sua poesia, que não é a das esferas elevadas, filosofia abstrata, mas do corriqueiro da vida, suas alegrias e desgraças. A obra desse poeta MAIOR deixa ver isso com clareza: a vida provê de tudo um pouco, sorriso e lágrima, amor e dor. Minha formulação é banal, mas real.
A experiência na sala de aula do Marcelino foi curiosa porque teve a Cris Eiko lendo a sua carta ao tempo, cheia de picardia. Na sequência, veio a minha cheia de agonia. Leia uma após a outra e, talvez, dê para sentir algo do que aconteceu ali no nosso encontro de penas.

----****-----
[carta de Cris Eiko]

São Paulo, 10 de junho de 2019.


Kronos, como vai? Tudo passando, como sempre?

Olha, confesso que estou um tanto ressentida contigo. Pois passas por mim e nem cumprimentas? Nem um “bom dia“, “boa tarde“, “como vai, tudo bem?“, mesmo que estejas só de passagem? Assim, como vou saber que passaste?  Por isso escrevo, não só por ser uma tarefa. E tarefa das boas, das que pedem reflexão. Passei um tempo refletindo, e o sábado já virou o próximo e eu ainda nem tinha terminado! As semanas têm passado aos pulos! É segunda, piscou, já é quarta, espirrou, chegou o sábado. Por isso peço que me avises ao passar. Quando eu era criança, demoravas tanto a passar, principalmente antes de o sinal tocar anunciando fim da aula. Nessas horas eu conseguia ver todos os teus movimentos, de segundo a segundo, no meu reloginho de pulso.  Agora não, és um ninja, e tenho perdido a hora, prazos, porque não te vejo passar.

Espere. Talvez eu que não esteja prestando atenção. Pois quando não estou escrevendo, desenhando, lendo ou tricotando, estou de olho sabe onde? No celular, que não só me informa as horas, mas também como os outros têm passado contigo. Admito, passo horas me distraindo seja com reclamação ou com ostentação alheia.

Me desculpe, senhor Kronos. Esta carta acabou sendo uma admissão de culpa. Não te vejo passar porque me ocupo com o tempo alheio em minhas horas ditas “livres“. Grata por abrir meus olhos. Espero conseguir parar e te ver passando, eu te dar “oi“, “bom dia“, antes que tenha que te dizer “adeus”.
----****----
[carta de Renata Cazarini]


Sim, senhor, eu voltei.
Tinha dito que não, mas voltei. E, assim, retomo a contagem. Não do início, mas de onde parei. Melhor: paramos, senhor, de onde paramos.
Não fazia luz alguma. Breu. Betume. Silêncio. Mudez total de ferir o ouvido. O meu doeu demais. Pra mim, não dava mais. Emergi e estou aqui, retomando a contagem.
Senhor, eu não sabia, mas agora sei que é possível. Nada é definitivo, nem mesmo isso de cair no fosso escuro. Tudo é transitório, temporário, ajustável ao mecanismo minúsculo e maiúsculo. Mecanismo... Engrenagens enroscam, é verdade, mas também dá pra ajustar com paciência. Meticulosamente.
Olho aguçado dispensa língua afiada. Você olha, vai e faz. Não fala nada, não. Vai e faz. Eu fiz, senhor. Não dava mais.
É um silêncio de doer, como eu já falei. É escuro, demasiadamente, insuportavelmente, escuro. Então eu fiz. Retomei a contagem.
Tenho 60 segundos. Período perdido no fosso não conta, certo, senhor? Eu sei, eu sei. Eu tinha aberto mão desse mínimo, que agora é muito, mas agora não abro mão nem dos 5 segundos perdidos no escuro, não, senhor.
Tenho 60 segundos: um momento, único, pra escrever esta breve carta, pra dizer que cortei o fio do tempo e caí no desvão, nesse lugar que não é, onde tudo é escuro, escuro de doer.
Doeu demais e foi assim. Até outra vida.
                                 Eu mesma
----****----


A segunda etapa da nossa aula foi um exercício de leitura em voz alta. Coisa curiosa e muito útil. Marcelino fala os poemas como ninguém. E ensina assim: “Lembrar sempre: a poesia está dizendo. O que acabou com a poesia foi a declamação. Esqueçam as rimas. Uma poesia é pra ser falada, dita, não declamada”.
O negrito do poema do Bandeira logo acima – “torpedo-suicida” – foi o exemplo que ele deu. Como se lê o poema, se a escolha da palavra chave de leitura recair sobre essa curiosa formulação bandeiriana, que parece deslocada – a meu ver – do resto do poema?
Marcelino distribuiu os seguintes textos e cada colega escolheu uma palavra-chave.
“Fumo” (Florbela Espanca): Lenita escolheu “mãos”.
“A solidão à sua porta” (Carlos Pena Filho): Heloísa escolheu “silêncio”.
“O morcego” (Augusto dos Anjos): Márcia Nichii escolheu “morcego”.
“Soneto 500 Vicioso” (Glauco Mattoso): Sônia escolheu “deus”.
“Soneto 500 Vicioso” (Glauco Mattoso): Renata [eu] escolheu “poema”. [é repetido mesmo]
“A arte de perder” (Elizabeth Bishop): Fátima escolheu “mistério”.
“Soneto da separação” (Vinícius de Moraes): Tânia escolheu “de repente”.
“Mortal loucura” (Gregório de Matos): Fernanda escolheu “cura”.
“Versos íntimos” (Augusto dos Anjos): Louise escolheu “ingratidão”.
[Nasci louca] (Stela do Patrocínio): Cris Eiko escolheu “nome”.


Sugiro correr o risco da leitura em voz alta. Falar a poesia é especial.