WIM WENDERS: DIAS PERFEITOS / ASAS DO DESEJO

 

WIM WENDERS: DIAS PERFEITOS / ASAS DO DESEJO

Delicado e sensível como é, o filme Dias Perfeitos (Alemanha/Japão, 2023, 125 min) esbarra no imperfeito quando a gente vai às minúcias da história de sua produção. 1. O mérito de ter sido gravado em apenas 16 dias, o que configura um contraponto aos projetos mastodônticos dos grandes estúdios, tem uma razão mais mundana, pois se trata da encomenda original de pequenos documentários acerca dos banheiros públicos de grife em Tóquio (The Tokyo Toilet) convertida em uma ficção de Wim Wenders. 2. O filme do cineasta alemão, que assina o roteiro com o japonês Takuma Takasaki, é a primeira indicação do Japão ao Oscar de uma obra de um diretor não-japonês e não residente no país, o que provoca desconforto com a ótica de um “outsider”. Sobre esses dois pontos, negativos a meu ver, sugiro a leitura das duas reportagens (em inglês).

Ver e gostar de Dias Perfeitos me levou de volta a Asas do Desejo (Alemanha/França, 1987, 123 min), trabalho icônico de Wim Wenders, ecoando até hoje na memória de quem já ia ao cinema na década de 1980. Eu vi de novo, no streaming (Prime), e ainda assim foi arrebatador. O programa duplo elucida tanta coisa (!) e eleva Dias Perfeitos de patamar, mesmo que Asas do Desejo tenha a dimensão de um filme maior – e não estou falando da duração (é só comparar). Na verdade, quem me levou a isso foi o próprio diretor:

Dias perfeitos é o mais perto que cheguei de fazer uma declaração sobre a paz. Para mim, uma das principais condições para se ter paz é a satisfação com o que se tem. Um dos grandes desafios para a paz é que nossos países, nossas economias estão viciados em crescimento. O crescimento gera guerras. O crescimento gera desigualdade. [...] Só é possível crescer mais às custas de outros que vão crescer menos, e essa é a causa da maioria das guerras. Hirayama é um pacificador. Ele é meu primeiro herói da paz... bem, exceto pelos anjos em Asas do desejo.”

Entrevista em inglês

“Melancólico” é um adjetivo que acompanha com certa regularidade as críticas aos filmes de Wim Wenders, mas, como ele mesmo observa, há neles uma visão otimista do mundo. Os traços de melancolia são facilmente identificados nas imagens em preto-e-branco (PB) bem exploradas nas duas obras: para simplificar algo que pode ser bem mais complexo, é possível associar a fantasia ao PB e a realidade à cor. Em Dias Perfeitos, os sonhos de Hirayama (Kōji Yakusho), faxineiro meticuloso dos sofisticados banheiros públicos, vêm sem cor, numa sobreposição de imagens que, revela o cineasta, foi realizada por Donata Wenders, sua esposa: “É quase como se fossem elementos de outro artista no meu filme”. Em Asas do Desejo (cujo título alemão é bem mais neutro: Der Himmel über Berlin ou O céu sobre Berlim), os anjos Damiel (Bruno Ganz, 1941-2019) e Cassiel (Otto Sander, 1941-2013) não veem as cores, e é sob a perspectiva deles que se passa a maior parte da narrativa.

Esses anjos observam a arquitetura de Berlim, então capital da Alemanha Ocidental antes da derrubada do muro (1989), e a sua população adulta angustiada, invadindo seus pensamentos, fazendo-nos ouvir seus diálogos internos (escritos pelo autor austríaco Peter Handke), bem como assistimos aos sonhos de Hirayama. A impressão-sensação é que Wim Wenders passou da escuta coletiva (Asas do Desejo) para a particular (Dias Perfeitos). No entanto, há, sim, na película de 1987, momentos íntimos de indivíduos que se fazem conhecer. Vou tratar apenas do velho senhor de nome Homer[o] (Curt Bois, 1901-1991), frequentador da biblioteca onde se reúnem muitos anjos.

Durante dois minutos, a partir dos 39 minutos do filme, Homero “pensa alto” sobre o mundo em conflito bélico permanente:

“O mundo some no crepúsculo, mas continuo narrando, como no início, na minha voz cortante que me sustenta. Este relato me exime dos distúrbios do presente e me protege do futuro. Chega de pensar nos séculos passados e futuros. Eu agora só penso num dia de cada vez. Minha admiração não mais pertence aos guerreiros e reis, mas sim aos objetos de paz, todos igualmente válidos. Mas ninguém conseguiu ainda cantar um épico sobre a paz. O que há de errado com a paz que sua inspiração não dura tempo suficiente para ter a estória contada? Devo desistir? Se eu desistir, então a humanidade perderá seu contador de estórias. A humanidade também perderá sua infância”.

Sabemos que Homero não é um anjo que optou pela vida humana, diferente de Peter Falk (1927-2011), o famoso ator da série detetivesca Columbo (anos 1970), que interpreta a si no filme. Contudo, fica evidente a concepção de que o poeta é perene, embora o motivo da narrativa épica migre da guerra para a paz. É o que clama Wim Wenders. É o que clama a poeta Luiza Romão no seu Também guardamos pedras aqui (Editora Nós, 2021) – inevitável pensar nessa crítica feita no Brasil acerca da Ilíada.

Um pouco mais adiante, Homero pensa: “Me recorde, musa, do nome do cantor imortal, que, abandonado pela plateia mortal, perdeu sua voz. Ele que, de anjo de poesia que era, se tornou o tocador de órgão ignorado e ridicularizado lá fora, nos limites da terra de ninguém”. (43’35”)

E reflete sobre a relevância da narrativa poética escrita, pensada, filmada, já quase no desfecho do filme: “Me mostre os homens, as mulheres e as crianças que procurarão a mim, seu narrador, seu cantor, aquele que lhes dá o tom, porque precisam mais de mim do que de qualquer outra coisa no mundo”. (2.04’14”)

A arte como esteio da vida humana, motor da paz, é a poesia de Peter Handke, a música de Nick Cave, o circo, o cinema, a arquitetura da Biblioteca Nacional de Berlim (Staatsbibliothek ou Stabi) e a Coluna da Vitória (Siegessäule, 67 m.) na Berlim de Asas do Desejo; é a fotografia, a música, a literatura, a arquitetura em Dias Perfeitos, que tem como locação física a Tóquio atual dos banheiros de grife e da Skytree, antena de 634 metros, e como cenário existencial a cultura da fita cassete e da casa pública de banhos. Nos dois filmes, há uma temporalidade nebulosa, o passado que não passa, persiste, enquanto o valor da vida está no presente, porque a paz reside no dia de hoje.

Renata Cazarini

Comentários

  1. Optimum est scriptum tuum. Taenia visifica "Asas do desejo" mihi valde placuit. Taeniam visificam "Dias perfeitos" adhuc non vidi. Praesentem sentire est vere pax animae. Gratulor tibi, magistra Renata.

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