TAMBÉM GUARDAMOS PEDRAS AQUI


De Luiza Romão, poeta, atriz e slammer

Tema: Ilíada, de Homero


Esse pequeno – mesmo – livro de poesia é uma dramaturgia completa da Ilíada, que a poeta toma como ponto de partida da literatura ocidental no poema “ifigênia”, primeira da coleção de 30 personagens do volume. Um excerto:


a literatura ocidental começou com uma guerra

não a neblina das grandes cidades

faz tanto tempo que talvez ouço quase

a literatura ocidental começou com um massacre


Além da sua formação como atriz na Escola de Arte Dramática da USP, onde conheceu o repertório do teatro clássico da Antiguidade, Luiza Romão leu a Odisseia e, depois, a Ilíada. Também viajou para a Grécia para desenvolver o projeto.


A violência na Ilíada é tanta, diz a autora, que as ações aterradoras dos gregos contra os troianos nem cabem na sua garganta, daí que ela, no poema “homero”, opte por preencher o interstício entre os versos “os gregos foram capazes de” e “milhares de troianos” com uma sequência de 27 linhas de tarjas pretas.



Mas a coisa fica ainda mais interessante quando se descobre que o poema se revela durante uma performance gravada: faz sentido, já que a autora-atriz, mestranda na FFLCH-USP com pesquisa sobre o slam no Brasil, se posiciona como alguém que “explora a palavra na intersecção com a performance e o cinema”. Ela mesma diz que “a estrutura do livro é um programa performativo, trânsito entre processo e resultado”. A performance de 10 minutos de alguns dos poemas do livro, lançado há pouco (31 de julho 2021), pode ser vista momentaneamente aqui.



Eu tenho me interessado cada vez mais pelo conceito de “dramaturgia expandida”, isto é, procedimentos de concepção da cena que extrapolam o convencional texto estruturado em falas e rubricas. Para entender melhor do que estou falando, sugiro ler este post sobre uma Antígona criada durante a pandemia. 


Pensando sobre o poema “homero”, não se pode falar de intermedialidade apenas, pois não se trata de uma adaptação de texto para audiovisual, mas de transmedialidade, pois todo (será?) seu potencial se realiza na transição da mancha gráfica estática na página do livro para a performance com solução gráfica de vídeo. E ainda assim cada uma das duas versões de “homero” existe per se, carecendo, porém, da outra para se realizar plenamente.


Num encontro do Slam Pé Vermelho, Luiza explicitou que as tarjas pretas são censuras, evocando também a ditadura e o apagamento de arquivos. Mas ela mesma exerce a censura, na página impressa, ao elidir os verbos violentos que retratam a barbárie da nossa cultura. No poema “agamemnon”, grande vilão na visão de Luiza, essa extensão da violência vem à tona:


te reconheço no coronel que ordena

     escavadeiras em território sagrado

netanyahu donald trump napoleão

sua saliva é a mesma dos banqueiros


Na conversa do Slam Pé Vermelho, que pode ser acompanhada aqui, a poeta aborda a recepção de clássicos, sem usar o termo técnico, convicta do imperativo da revisitação crítica do cânone: “Para entender a necropolítica contemporânea foi interessante voltar para o massacre de origem e revirar essas pedras. (...) A gente precisa mexer nessas pedras, ver o que está por baixo delas, mover monumentos”. Ela usa a perspicaz formulação de “não monumentalizar” esses saberes canônicos: “No arquivo dos vencedores, onde a gente pode encontrar os subalternos? Talvez a gente possa imaginar, e aí entra meu trabalho como poeta: tentar imaginar o que podem ter sido as vozes soterradas pelas pedras”.


Um excerto de “andrômaca”, personagem que move a autora:

não conheci troia

ruínas a mais ruínas a menos

também guardamos pedras aqui

do outro lado do oceano



Seguem dois comentários sobre a poesia de Luiza Romão:

“As pedras de Luiza Romão têm a ver menos com as pedras no bolso de Virginia Woolf, e mais a ver com as pedras jogadas pelos palestinos em Sheikh Jarrah: um ato ao mesmo tempo concreto e simbólico, de autodefesa e resistência ao neocolonialismo”. (fotógrafa e poeta Adelaide Ivánova, orelha do livro Também guardamos pedras aqui)


Luíza e o livro Sangria. Foto: Sérgio Silva


“Sinto Luiza como uma expressão absolutamente contemporânea da história e da cultura indignada e comprometida com a política estética desta segunda década do século XXI. Luiza escreve e intervém hoje, sobre hoje. Atua com força e também com disfarçada delicadeza”. (ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda, prefácio do livro Sangria, 2017)


No livro Sangria, bilíngue português-espanhol, um calendário de 28 poemas que compõem o ciclo menstrual, a poeta já ecoava personagens femininas da mitologia grega.


Antígona, no poema 19, intitulado “FEBRE”:

carne viva

em terra quente

carne quente

enterrada viva


antígona ao contrário


de cada desaparecida

desenterrar

os ossos

o nome

o algoz


Penélope, no poema 20, intitulado “FADIGA”:

sozinha

penélope desfia

desafia

abutres, o filho, a multidão


mas os deuses aplaudem ulisses


Ariadne, no poema 21, intitulado “VERTIGEM”:

do planalto

ariadne observa

os labirintos

minotauros

se perde

uma linha reta vira novelo

a tragédia-novela


O livro é dividido em capítulos (1 – Genealogia, 2 – Descobrimento, 3 – Tensão pré-menstrual, 4 – Corte, 5 – Ovulação, 6 – Menstruação), amplamente ilustrado com fotos PB bordadas em linha vermelha com elementos metálicos, artesania realizada pela poeta. O projeto derivou ainda numa série de videoarte, com performances feitas por mulheres. O projeto contou com uma campanha de financiamento coletivo. Luiza Romão, falando o poema 1, intitulado “Nome completo”, pode ser vista aqui.

Renata Cazarini




Comentários

  1. Muito obrigada, Renata. Interessantíssimo! Não conhecia o trabalho dela. Garimpando aqui. Compartilhando também.

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